"Arma Branca de Silêncio"

Daqui, vejo a dança sobre o fio de um trapézio, inaugurando significados.
Um vulto balança em desalinho, exibindo cicatrizes de uma dor que não existe.
Vejo os farrapos onde o silêncio passou,
a morte, desacreditada, presa à parede.
Ela acena-me, desdenhosa:

“Olha como me visto de neutro em verdade opaca.”

Emudeço, avessa ao abandono infantilizado
e à agressiva cor da solidão.
Sem previsão, deixo fluir —
sei que a rejeição é um rio sem nome,
e essa parte é a inevitável consequência.
Sou a observadora que olha para dentro do absoluto.

Um dia, atrevi-me a ir ao escuro do escuro,
guiada apenas por sílabas perdidas, fragmentadas.
Já não me assusta o longe.
Daqui, vejo parte do todo
a caminho de paredes sem substância,
a desenhar semicírculos de socorro rente ao chão.

No horizonte, uma biblioteca
vigiada por um louva-a-deus,
imitando com precisão o delírio,
transformando o alimento em combate.
Ele vê víboras deslizando dos mastros das caravelas,
em línguas vazias,
corrompendo os livros futuros
com uma insanidade vulgar.

Os instrumentos atrás da cadeira são as maiores vítimas:
antevejo o som disforme dos corpos em colapso,
uma má convulsão fisiológica.
Esse inferno descontrolado prossegue
até o esgotamento da consciência,
despida de sentido.

Estou cansada da morte em todos os cantos,
do hálito sem vida,
do canto fingido amigo,
do amante sem amor,
do poeta parafraseado.

A morte não é mais um propósito,
mas o rastro perdulário de um diagnóstico narcísico.

não te leio —
te escuto girar.

Entre uma imagem e outra,
há o som discreto
de uma maquinaria emocional
que insiste em funcionar
mesmo com as peças gastas pelo tempo.

não é o poema que fala —
é o esforço contido da alma que ainda tenta.
a chave de fenda do afeto perdido
a girar dentro de um peito que pulsa,
mesmo quando diz que já não espera.

vejo teus versos como placas silenciosas
se deslocando sob a pele do tempo.
e ali, na fricção,
nascem imagens que doem bonito.

há em ti uma engenharia rara:
a que constrói abismos
com a precisão de um relojoeiro.

e por isso, agradeço —
por não disfarçar o esforço,
por deixar visível o gesto,
e ainda assim fazer tudo soar
como se o tempo estivesse,
com delicadeza,
a sussurrar no teu ouvido.

nenhuma voz conhece o amor melhor do que o próprio Amor.

nas cordas silenciosas do tempo
ressoa nos ossos da noite
quem compreende a ausência
sabe que ela também canta
quem lê o que não se vê

escuta...

o vento arqueia dunas
o rio molda margens sem perguntar
o fôlego precisa ser contínuo

o amor não se anuncia
é sussurro de estrelas

num céu que nunca se entrega por inteiro
só quem entende o que não foi dito
constrói a própria clave

no compasso do silêncio
nessa espiral onde o som respira
antes da palavra

tudo é partitura para quem lê
o que não se vê

'Esse Amor'

esse amor não se contenta em existir.
rói a língua e devolve palavras cegas.
beija como quem morde a garganta do mundo,
engole, engole,
e depois vomita estrelas.
carrega livros nas costelas,
páginas rasgadas que voam como corvos,
palavras soltas que se esquecem do próprio nome
mas nunca do destino.
esse amor preserva o que não se toca,
arde no que não se vê,
respeita o que se quebra com facilidade,
mas nunca com delicadeza.
afasta-se e expande-se
como um grito que se curva sobre o próprio eco.
comprime-se em espaços mínimos,
na dobra entre o olhar e o esquecimento,
desfaz-se como lâmina na boca.
mata com o gesto e vive com o silêncio.
afoga o outro e depois o ressuscita,
só para vê-lo morrer outra vez,e outra.
por décadas, séculos, milênios.
por instantes que duram o tempo de um relâmpago.
esse amor é um bicho em transe,
ritual de luz que cega,
pássaro de vidro a cortar o céu.
ele diz "vem" e depois recua,
beija e afasta o rosto,
oferece a pele, mas nega o toque.
esse amor vive no quase,
nas margens que nunca se tocam.
e quando se encontra, é só para se perder melhor.
esse amor não morre.
afoga-se em si mesmo,
ressuscita apenas para provar o sabor da própria ausência.
e quando pensas que ele acabou,
é só o início do grito que se prepara.

'Domingo de Moita e Mistério'

Ontem... domingo, dia de missa, e o céu pairava sobre Sucupira como quem segura um segredo.
As ruas pareciam suspensas, ainda frias, molhadas pela chuva, imersas num silêncio quase sagrado.
E ali, na calçada da igreja, ela caminhou com passos leves, trazendo nas mãos o peso invisível das gostosuras do pensar.
Mas foi então que o viu. O Louco Poeta. O homem que cantava com fome, que a procurava em cada palavra, em cada sombra, por baixo das pedras, nos quatro cantos do mundo. Ele vinha com passos perdidos, os olhos a arrastarem um poema inacabado.

E foi nesse instante que ela se atirou para a moita.

Sim, uma moita qualquer, no meio da rua, com a coragem absurda dos que preferem o mistério à revelação. Ali ficou, misturada com folhas e silêncios, a escutar os passos que não pararam,
a sentir o eco de um olhar que nunca a encontrou.

Talvez ele tenha passado e pensado:
"Ali jaz o segredo que jamais decifrarei."

E ela sorriu.

Porque, às vezes, o amor é isso: saber quando se atirar para a moita
e deixar que o outro escreva o poema errado.

Amém.

'Ritual de Lâminas'

     (Dueto)                                                                          


— Há anos deslizo sobre o fio que não sei se é teu.
— E eu corto onde não há carne.

— O que nomeias já é ausência.
— O que não nomeio é o que permanece.

— Quando toco, é o vazio que arde.
— Quando me afasto, é o toque que fica.

— Sou o peso que não assenta.
— Sou o muro que não espera.

— E se um dia eu parar?
— Não paramos. Nem começamos.

— Somos o intervalo entre o som e o eco.
— Somos o eco que se esquece do som.

— És o risco que deixo de olhar.
— És o corte que nunca termina.

— É o quase que nos sustenta.
— É o quase que nos desmorona.

— Somos a lâmina e o vazio.
— Somos o que sangra quando ninguém vê.

— E o que nos mantém?
— O corte que não fecha.
— A ausência que não se desfaz.

— Há anos nos rasgamos.
— Há anos nos escutamos sem ouvir.

— Sou o silêncio que pesa.
— E eu, o fogo que não arde.

— E quando um for, o que resta?
— O ritual.
— O nada.
— O tudo.

'O Grito que Ninguém Ouve'

Que o mundo se rasgue em dobras,
abra costuras de vento e enxofre,
revire-se como um ventre sem dono.

Que o tempo trague os seus relógios,
morda o chão até sangrar raízes,
desenhe veias de enxurrada no dorso das cidades.

Mas nada dilacera a matéria
como um poema que nasce no ventre do silêncio,
tão quieto que o universo se inclina para ouvir.

'O que não se pensa'

Daquilo que não se pode ver,
o coração veste neblina.
Os olhos ausentes de si mesmos,
um espelho que esqueceu o reflexo.
O pensamento adormece antes de nascer,
a ideia evapora antes do nome.
Nada pesa porque nunca foi.
O desnecessário respira dentro do nada,
onde o nada não sabe que existe.

'Dueto'

— Se vens da Fonte, por que trazes a Sede?
— Na boca, reticências abertas, por onde a água escorre.

— O cântaro pesa, mas nunca se enche.
— As mãos são grades por onde o líquido se evade.

— A sede é um eco que bebe a própria voz.
— Um poço onde a lua se afoga sem tocar o fundo.

— O que sacia, evapora antes do primeiro gole.
— O que escorre, nunca volta ao cálice.

— Entre o rio e a foz, um deserto sem pegadas.
— Entre a língua e a fonte, a sede infinita do verbo.

Cursou sobre ventos,
mas nunca os teve nos ossos.
Mediu tempestades sem desabar,
despiu nuvens sem se molhar.
Nunca sentiu o peso de uma brisa na nuca,
o fio de ar a cortar a pele no entardecer.
Sabia os nomes das correntes,
mas nunca os teve na língua.
Faltava poesia.
Faltava partir sem destino,
deixar-se levar sem mapa,
perder-se sem querer voltar.
O vento rodeou.
O vento passou.
Ficou.

'nome nenhum'

nenhum nome pesa na língua.
nenhum nome finca raízes.
o que sou desmancha antes de ser.

escadas descem sem corpo.
o templo dorme sob os pés.
a cidade abre os olhos sem me ver.

cada passo apaga pegadas.
cada sombra dissolve antes da luz.

não sou ausência.
sou vento que nunca ficou.

os sonhos chegam sem tocar,
vestem-se de névoa, partem sem rastro.

rostos escorrem como rios,
olhos são margens sem memória.

a verdade não me pede nada.
o tempo não me guarda.
o anonimato veste-me sem costura.
e sigo, sol adentro.

desça ao chão que não se move
o nome escorrega antes de ser.
seja o passo que não pesa,
a sombra que não reclama ausência.
ninguém verá. ponto.
siga onde a chuva não pergunta,
e o silêncio não pede resposta.
use o grava(dor)
sem ligação,
mesmo aparente entre estrofes.
cante alto,
até que o poema surja,
e derreta na voz.

lugar onde o toque é só presságio,
tremor de pele que nunca se dá.
algo arrasta-se sob a pele da água,
não tem nome, mas morde.
desejo suspenso,
silêncio a rasgar poros,
roçando o corpo e negando o toque.
respiro como quem engole o fundo.
o ar rasga por dentro,
sabor de ferro e água antiga.
o mundo é ventre — e afundo.
o mundo é boca — e mordo.
quem respira primeiro?
o silêncio que pulsa,
ou a ausência que arde?
tudo espera no intervalo
entre sopro e arrepio,
onde o instante hesita,
e o mundo, por um segundo,
é só desejo preso na língua.

"Tinta Seca Sobre o Flow"

Há coisas que só a ausência decifra.
O cadáver esquisito
dorme sem epitáfio.
Tão exótico, tão meticuloso,
tão certo de que lia entrelinhas.
Nunca soube
onde começava o vazio.
A luz não me fere os ossos,
certas palavras fecham-me o corpo.
Como portas
sem dobradiça.
Minha saudade?
Lugar que o tempo não dobra.
Minha memória?
Vento. Respira de dentro para fora.
Ainda finjo juízo,
num instante exato.
O som do impossível
toca a boca antes da pronúncia.
Na semana passada,
um coração errou o compasso.
E ainda assim
dançou.
Desde então,
cresço onde o nome não cabe.
Certo dia,
quase mergulhei num bilhete.
Mas vi que
a tinta estava seca.

"Aprendeu a caminhar?"


Ou talvez sempre tenha atravessado,
mas só agora decides vê-la.
E assim, a sombra atravessa.
Como quem tateia o limite do impossível,
teus dedos, se hesitassem,
deslizariam entre o ir e o ficar.
Minhas mãos, se quisessem,
forjariam abraços sem toque.
A mesa? Apenas um hiato
entre o gesto e a ausência.
Mas há um instante em que algo desliza,
e não há madeira que o sustente.
Poças de silêncio que nunca secam,
todas as sombras são ecos sequestrados.

"Não saberás, mas já foste"

O primeiro passo tropeça na tua sombra,
e o espelho desvia o olhar.
Quando o tempo se inscrever na tua pele,
saberás quem traçou o caminho
antes que teus pés o pisassem.
Presságio ou eco?
Orbe ou espiral?
O tempo curva-se como um mapa sem margens,
e talvez a manhã redesenhe teus ossos
num metal que não se dobra.
Mas se o chão for só pausa entre dois abismos,
serás tu quem ousará atravessar o fogo?