Sobre a beleza da observação

 

Eu preservo a forma como caminhas ao descer a rua,
cada passo um verso que dança entre luz e sombra,
como se cada pegada fosse uma sílaba
sussurrada ao vento que o envolve.

Preservo o ritmo, o balanço, sua maneira de entrar
na biblioteca, tocando os livros com reverência,
pausando para os abrir, ou avançando ao folhear cada página
com olhos que decifram os segredos do mundo,
leves como asas que roçam o ar em um suspiro.

Preservo o sorriso que ele desenha sem saber,
quando o sol se inclina e o mundo, por um instante,
transforma-se em tela, pintada apenas para ele —
e para mim, que o observo mais do que o vejo.

Eu guardo isso tudo dentro de mim, como quem guarda
um segredo ou uma prece; porque amar
é também saber deixar livre, é observar o voo,
e não apenas o pássaro revelado.

Guardar é permitir que cada momento se eternize
não confinado, mas na memória e
no coração, onde o verdadeiro valor nunca se perde,
mas se ilumina e ressoa, como poesia que nunca se cala.


Caminho

 


Há um caminho que surge depois do primeiro passo, onde as pegadas da incerteza se misturam com a areia do destino. É um caminho menos trilhado, repleto de curvas sinuosas que se enrolam como os segredos mais profundos da alma. Sob um céu de expectativas silenciadas, a jornada segue, flutuante sobre o manto da realidade. Este caminho estende-se sob uma ponte — um monumento à transição, um arco que liga mundos, presente e futuro, medo e coragem. Veículos passam, indiferentes ao mundo abaixo, as suas rodas desenham na paisagem metáforas de um progresso que nunca toca o chão. O silêncio é quebrado pelo sussurro dos pneus, como pensamentos fugazes na mente de quem se atreve a sonhar. Ali, entre o verde que tudo observa, caminho com um mapa desenhado em folhas de outono caídas. São mapas do efémero, guias para um viajante sem destino. Ao meu lado, uma cerca de madeira, como uma promessa de segurança que apenas sugere, mas nunca confina. A cerca é porosa, permitindo vislumbres do desconhecido, pequenas frestas por onde a luz do novo se infiltra, seduzindo os corajosos. A cada passo, a paisagem muda — não apenas ao redor, mas dentro. O caminho é um espelho da alma, refletindo o que somos e o que tememos ser. Sob o peso do mundo, o caminho curva-se, não em desespero, mas como um convite para dançar com a própria sombra. À noite, as estrelas descem para tocar a terra, curiosas com o brilho tímido das esperanças que carregamos nos bolsos furados. Na distância, um barco passa, vermelho como o coração de quem já amou e perdeu. É um ponto brilhante em fuga, uma memória em movimento, deixando para trás o conforto do conhecido. Ele carrega histórias que nunca serão contadas, porque a estrada é um segredo que se guarda entre as curvas do tempo. E assim, caminho, com a certeza incerta de que cada passo é um verso num poema que a vida escreve, sem rima, cheio de ritmo, e absolutamente surreal.

O Despertar de Zefinha

Em Sucupira, onde cada pedra e cada olhar escondem um melodrama suficiente para abalar os alicerces do céu, Zefinha, ou Josefha para os que cultivam o formalismo como quem cultiva orquídeas raras, tornou-se a personagem principal de uma farsa cósmica tecida com os fios da própria vida. Numa tarde de sol traiçoeiro, que mais parecia um equívoco climático, flagrei Zefinha à beira da mata ancestral, olhando ao redor com a suspeita de quem tramava desvendar ou criar um segredo.

"O que diabos essa mulher vai fazer lá?", murmurei para mim mesmo, com a adrenalina fofoqueira de Sucupira correndo nas veias. Não resistindo ao chamado do desconhecido, segui-a, movido pela mesma força inexorável que leva o pecado ao confessionário.

Zefinha, com sua saia rodada como uma cortina de teatro e um lenço que pintava mil cores no ar, pisava com a autoridade de quem sabe todos os segredos do chão que pisa. Eu, atrás, me questionava: "Será que é alguma macumba suburbana ou apenas um chamado mais terreno?"

O destino de Zefinha era conhecido apenas pelos arcanos da cidade, pois só os velhos sabedores de Sucupira compreendiam que ela se dirigia ao tronco sagrado do Jequitibá, um palco de encontros entre os espíritos da floresta e os vivos, sob o véu do crepúsculo.

Ao alcançar seu teatro natural, ela não titubeou: abraçou a árvore com a intimidade de um velho amor, fechou os olhos e inspirou o éter da floresta. Iniciou então um ritual raramente visto por olhos profanos. Com murmúrios que poderiam ser confundidos com a brisa, Zefinha invocava o famoso sono da confiança, aquele estado sublime onde a alma de Sucupira se desnuda sem pudores, pronta para receber as fofocas etéreas que atravessam eras.

Os ancestrais não cochichavam, eles declamavam segredos com a eloquência de quem já não teme a verdade. E ali, escondido atrás de uma moita, quase me deixei levar pelo terror sagrado de ser descoberto.

As matriarcas da região dizem que neste sono encantado, a confiança se tece como uma cortina de teatro, onde cada sonho é uma cena dirigida pela própria mãe natureza. Zefinha buscava essa conexão divina para decifrar os enigmas comunitários e aplacar as angústias ocultas nos corações dos sucupirenses.

Sob o testemunho das árvores ancestrais, ela se entregou ao sono dos deuses. As horas se desenrolaram como uma fita de cinema, e a noite estendeu seu manto estrelado sobre o palco da vida. Eu, ainda escondido e agora tremendo não de medo, mas de um frio que esculpia ossos, observava o desfecho incerto deste drama noturno.

Quando Zefinha despertou, a noite já vestia suas sombras mais densas. Ela se levantou, visivelmente rejuvenescida, os olhos faiscando com a luz de quem conversou com estrelas. Retornou à vila não apenas anos mais jovem, mas com uma aura que desafiava a própria noite.

De volta à civilização de Sucupira, manteve o silêncio dos iniciados. E eu, que vi tudo, debatia-me entre o dever do segredo e a urgência de narrar esse milagre cotidiano. Nos dias que seguiram, as palavras e ações de Zefinha transbordavam uma sabedoria tão abissal que mesmo os mais céticos tiveram que se render à evidência de que algo extraordinário se passara sob o manto daquela mata.

E assim, o mistério do sono rejuvenescedor de Zefinha entrou para o arsenal de segredos de Sucupira, sussurrado de boca a boca, lembrando a todos que, por vezes, é necessário mergulhar nos abismos da existência para verdadeiramente apreender os segredos que ela reserva, num eterno jogo entre o visível e o invisível.

O Segredo do Repolho Proibido

Outro dia, entrou-me porta adentro uma professora em pleno desespero. Era um misto de tragédia shakespeariana e novela mexicana. Veio contar-me, com lágrimas nos olhos e um tom quase confessional, que Joãozinho, o mais conhecido rebelde da escola nos seus cinco anos de existência, havia cometido um pecado grave. Não, não foi riscar a carteira com marcadores permanentes nem lançar aviões de papel na sala de aula. Joãozinho, aquele pequeno subversivo, tinha lido algo proibido na biblioteca.

Sim, lido! Um ato que, em outros tempos, seria até motivo de orgulho. Mas não, o problema era o que ele havia lido. Não era uma enciclopédia. Não era um livro de ciências. Era, segundo a professora, “aquele tipo de coisa que não é apropriado para mentes tão jovens”. Prontamente imaginei: um romance picante escondido entre os contos de fadas? Uma crítica ao sistema educativo? Talvez algo de Nietzsche, com as suas ideias perigosamente filosóficas? Não, nada disso.

— Foi sobre bebês, senhor, sobre bebês que nascem do repolho! – disse ela, com a expressão de quem tinha acabado de testemunhar o apocalipse literário.

E eu ali, tentando conter o riso. Porque, vejamos, qual é o problema de se imaginar que bebês podem vir de repolhos? É uma metáfora bonita, até. Sustentável, diga-se. Muito mais prática do que cegonhas, que têm um péssimo histórico em logística.

A professora, no entanto, não achava graça. Para ela, o Joãozinho, em toda a sua curiosidade infantil, tinha cruzado uma linha inaceitável. Comecei a refletir: por que será que proteger as crianças da fantasia parece mais importante do que protegê-las da realidade? Não seria mais útil ensiná-las que os bebês não vêm de repolhos, mas que podem, sim, nascer em contextos muito menos poéticos?

Joãozinho, no entanto, parecia alheio a tudo isso. Foi encontrado na hora do recreio, debatendo com os amigos sobre qual repolho daria os bebês mais saudáveis: os verdes ou os roxos. Uma questão científica que, francamente, muitos adultos não saberiam resolver.

E ali ficou o Joãozinho, com sua imaginação intacta, enquanto a professora e eu concordávamos, num raro momento de cumplicidade: o verdadeiro perigo para a juventude não está nos repolhos. Está nos adultos que insistem em esmagar a criatividade com o rolo compressor da realidade.

O Rapaz da Torre

Em Sucupira, uma cidade onde as histórias se entrelaçam como as vinhas antigas nos muros de pedra, fala-se da lenda do Rapaz da Torre. Durante o dia, as suas aparições são raras; conta-se que reside no andar mais alto e esquecido de uma antiga torre de relógio, que se ergue acima dos telhados desgastados pela salinidade do ar. Mas é ao cair da noite que a verdadeira natureza deste enigmático personagem se revela: transforma-se no Ego-Corvo, uma criatura de sabedoria e sombras, voando silenciosamente sobre as estreitas ruas de Sucupira.

O Rapaz, cujo verdadeiro nome se perdeu no tempo, carrega consigo os segredos e os medos dos habitantes da cidade. Vê tudo, desde os amores não confessados dos jovens apaixonados até às transações sombrias nos becos escuros. Ninguém sabe ao certo se é um guardião ou um fofoqueiro de plantão, mas a sua presença é sempre um presságio de que verdades ocultas estão prestes a ser reveladas.

À noite, sob o manto de Ego-Corvo, sussurra nos ouvidos dos habitantes, as suas palavras carregadas de cautela e proteção. "Cuidado com o coração entregue de ânimo leve," poderá advertir uma rapariga cuja paixão a deixa cega para os perigos do amor. Ou "Guarda os teus segredos, pois as paredes têm ouvidos," alerta um comerciante prestes a fechar um negócio arriscado. Mas o Rapaz da Torre não apenas impede; ele também guia, encorajando alguns a dar passos que temem, mas que são necessários para o seu crescimento.

O paradoxo do Rapaz da Torre é que, enquanto ele próprio é prisioneiro da sua forma e função, ele oferece a chave para a liberdade daqueles que escutam as suas palavras. A cada nova lua, os habitantes de Sucupira reúnem-se para partilhar histórias sobre como o Ego-Corvo os influenciou, para melhor ou para pior. Com cada história, o mito do Rapaz da Torre cresce, um lembrete constante de que todos carregam um guardião e um carcereiro dentro de si.

Por trás da sua fachada misteriosa e das suas asas escuras, o Rapaz da Torre busca a sua própria libertação, um dia para voar não como um corvo, mas como um ser livre das amarras do medo e da dúvida. Até lá, Sucupira permanece sob a sua vigilância, cada habitante enfrentando as suas próprias noites escuras, cada um aprendendo a distinguir entre a voz da cautela e o chamado para a aventura.

Entre a Lama e o Infinito

Estava na igreja, tentando concentrar-me no sermão, quando um sujeito se senta ao meu lado e, de repente, começa:

— Meu Deus, pequei. E não foi pouco, não. Ontem mesmo, olhei duas vezes para o jornal de anúncios do supermercado, mas não era pelas promoções. Era por aquelas frutas... tão brilhantes, tão perfeitas, que me senti um Adão moderno, pronto para morder o pecado.

Fez uma pausa, suspirou fundo, e continuou:
— Sonhei, Senhor, com mulheres e repolhos. Sim, repolhos, porque Deus me livre de ser banal até nos devaneios. O problema é que já não sei mais quem sou. Ou, pior, sei, mas não gosto de admitir, porque isso daria razão à vizinhaça, que sempre disse: “Esse menino vai dar trabalho.”

Ele ajeitou-se no banco e foi em frente, sem pressa:
— E, veja bem, Senhor, não sou eu quem decide. A minha cabeça, essa trapaceira, corre para lugares onde eu nunca pedi para ir. Ora, sonhar com cavacas? Isso é coisa de gente saudável? Não é. Eu sou todo errado. Mas... ai de quem ousar corrigir-me! Porque a errância, Senhor, é a minha única constância.

Fez o sinal da cruz como se estivesse a rubricar uma carta.
— Se puder, Deus, apaga essas vontades estranhas. Mas não todas. Porque, sabe como é, ser santo deve ser um tédio terrível. E eu, mesmo errado, gosto de sentir a vida como ela é: desorganizada, ácida, meio cômica, cheia de repolhos e pecados pequenos.

Deu-me um sorriso cúmplice antes de se levantar e sair, como quem não tinha dito nada demais. Mas, naquele dia, foi a homilia dele que ficou comigo. Afinal, quem pode atirar a primeira pedra, se todos, no fundo, andamos a sonhar com repolhos?

Deixa o Vento Fazer o Serviço

Não farei caminho algum, criatura impaciente! E cá pra nós, quem é que em sã consciência confia numa flecha gramatical? A gramática, coitada, já tropeça sozinha no seu dia a dia, imagine atirar com precisão! Cantando? Ora, meu caro, desafinar já basta a vida, que vive a puxar cordas fora do tom. Desenhar? O lápis nem bem se encosta ao papel e já está a rabujar que isso não é função de quem quer sossego.

E levar-te ao mítico dos míticos? Pois saiba que nem os poetas querem mais saber desse sossego de biblioteca! Estão todos lá fora, a contar piadas para as estrelas e a rir do tempo que perdem a serem lidos pelos que não entendem nada. Sossego, meu caro, é invenção de quem nunca teve a ventania certa a bater-lhe na cara.

E essas promessas? Chegar antes da morte, enfrentar pânicos, cruzar galerias de ópio? Ora, ora! Chegar a quem, criatura? Que adianta correr com tanto drama se a vida se desenrola mesmo é em passos miúdos, tropeços e um gole de café frio entre um susto e outro?

Então, sossega essa lâmina em repouso e vai aprender com a vida. Que o ferro não tem paciência, mas sabe esperar. E eu, cá no meu canto, não canto, não rabisco e não invento caminho nenhum – que para viver, já basta atravessar o que há sem pedir tanto mapa! 

Enigmas de um Território Metafórico

Há quem chegue a Sucupira e veja um mar de pedras, rochas e desfiladeiros... Eu vejo cavacas. Muitas cavacas que me impediriam de exercer minha profissão para manter minha saúde mental. Sim, cavacas poéticas, as que só se comunicam metaforicamente, as sensíveis, as mal compreendidas e por aí vai. Mesmo que essas cavacas, tão cheias de segredos e nuances, sejam as verdadeiras guardiãs do território sucupirense. Cada uma delas se comporta como um enigma delicado, desafiando o entendimento e testando a paciência de qualquer um que se atreva a decifrar seus códigos mais profundos.

Vista ao longe, a cidade pode parecer apenas um amontoado de desafios intransponíveis, uma paisagem desértica de dificuldades — e um frio e chuva da porra. Mas para os que persistem, cada cavaca se revela como um portal para um mundo onde o absurdo e o sublime se entrelaçam em uma dança desajeitada.
Aqui, onde os sentimentos e pensamentos são comunicados através de símbolos e metáforas, cada passo é uma linha de um diálogo ainda por ser plenamente compreendido.

E enquanto alguns veem apenas pedras no caminho, os verdadeiros exploradores de Sucupira — ou seriam decifradores de enigmas? — veem oportunidades para desvendar os mistérios da mente e do comportamento humano. Sim, essas cavacas poéticas, que exigem de nós não apenas um olhar atento, mas uma alma disposta a dialogar com as camadas mais escondidas da comunicação. Ah, Sucupira, tua beleza não está nos sentidos óbvios, mas nas curvas enigmáticas e nos sussurros das tuas cavacas, que transformam cada jornada pela cidade num espetáculo de interpretação e revelação profunda.

Ah, Sucupira, tua beleza não está nas linhas retas, em vinte minutos e acabou a cidade, mas sim no labirinto de mistérios e provocações que tu, disfarçadamente, ofereces a todos que têm a coragem de te explorar mais profundamente.

Amo, minha, vossa, tua cidade!


O quê, campainhas no mar?

Oh, mas que espetáculo risível! Roubaram-te a locomotiva solar, essa tragédia de proporções cósmicas.
As tuas metáforas, coitadas, esfarelaram-se em pó... Não, não um pó encantado, mas a poeira banal de um ego despedaçado. E esses beijos punitivos? Dramáticos a tal ponto que até as árvores, pacientes por natureza, já terão desistido de suportar tamanha insensatez.

Agora pretendes equilibrar-te na loucura e fazer ressoar campainhas nos três reinos, como se fosses maestro do vazio? És tão desafinado que até o silêncio se nega a acompanhar-te, preferindo o exílio à tua melodia desorientada.

Bravo, poeta! Aplaudamos este naufrágio de intenções, enquanto os espectadores, cúmplices insólitos deste teatro de desatino, riem silenciosamente do mar onde encalhou a tua imaginação.

A Moderna Dança de Narciso

Num salão adornado com o brilho sutil da ironia, um personagem singular dança sozinho ao centro, cativante como um luar cheio, mas igualmente distante. Este ser, um mestre da autoadmiração, veste-se de encantos e de espelhos, cada movimento uma ode à própria magnificência. Ah, como os espelhos amam-no devotamente, refletindo apenas o que ele deseja ver.

Nesta dança solitária, a música é composta de ecos—palavras suas, pensamentos seus, um coro singular para uma plateia de um. Os livros que lê são diálogos consigo mesmo, páginas que suspiram com sua sagacidade. E as músicas que compõe, óperas de uma só voz, são solos longos que reverberam pelos corredores de sua mente palaciana.

Através das janelas, a noite observa, muda, enquanto ele se deleita com a própria imagem refletida nas taças de vinho. A bebida é amarga, mas ele a adoça com sorrisos para si mesmo, cada gole uma celebração de seus encantos inigualáveis.

E quando ele fala das "verdades" nas paredes—ah, essas são suas obras-primas, murais vivos de um mundo onde cada estrada leva a ele, cada história é a sua história. Não se engane, caro observador, aqui cada verdade é tecida com fios de ouro extraídos de sua mina interior, rica em fulgor, mas talvez pobre em humildade.

Mas, oh! Como é esplêndido o desfile! Assista, mas não se aproxime demais. Admire de longe, pois o calor de sua estrela pessoal pode ser demasiado para corações que batem por algo além do eu. E se por acaso desejar juntar-se a essa valsa, saiba que dançar com ele é mover-se ao som de um ritmo que celebra apenas um coração, uma alma, um ser.

Em sua companhia, você poderá aprender a arte de ser uma nota numa sinfonia, um sussurro numa tempestade de declarações. Mas cuidado, a beleza de sua presença pode ser tão cortante quanto vidro, tão sedutora quanto um abismo adornado de rosas.

Com esse ser, cada dia é um epílogo, cada noite uma cortina que se fecha. No palco de sua existência, todos somos meros espectadores, talvez até convidados de honra, mas sempre à sombra de sua imensa luz. Que papel extraordinário é ser parte deste universo, onde ele é o sol, e todos nós, distantes planetas, giramos, fascinados e cautelosos, ao redor de sua magnífica gravidade.

Dançar entre o inevitável e o inesperado.

Há momentos em que a brisa transforma-se numa cortina invisível, tocando o rosto com dedos de névoa, sussurrando segredos de um universo paralelo onde o tempo se desdobra como origami. Nessas horas, há uma força que flui, não como um rio, mas como vinho derramado da taça das estrelas, embriagando-nos com a possibilidade de transformar pedras em pássaros.

As tarefas silenciosas que tecemos no dia a dia são como aranhas que desenham teias em cantos esquecidos, cada fio uma ponte para uma revelação, cada entrelaçar uma escultura de sombras dançando ao luar. E, no meio do que muitos chamariam de caos, existe um baile de máscaras onde cada partícula de poeira é uma estrela perdida, cada sombra um convite para um valsar com fantasmas amigáveis.

Mesmo o declínio, quando observado sob o microscópio da alma, revela-se como uma dança de átomos em festa, uma celebração efêmera de tudo que foi e será. A cada folha que cai, um universo se expande, oferecendo uma coreografia de despedidas que apenas os verdadeiros poetas conseguem aplaudir.

E assim, nesta dança entre o inevitável e o inesperado, encontramos um santuário de paz, um equilíbrio esculpido na intersecção entre o que nos impele e o que nos acalma. Há uma elegância sublime nos gestos mais simples, nas viagens que nossa consciência empreende para além do agora, para além do visível.

Não é necessário mais do que uma leve inclinação da alma, uma predisposição para perceber o invisível, para descobrir que, quando o mundo empurra em direções opostas, é exatamente lá que a verdadeira poesia se aninha, tecida pelo silêncio e composta pelas mãos do invisível.

Com afeto e leveza,

Uma alma que também dança entre ventos e folhas.

Chego sempre depois da maré

Chego sempre depois da maré,
Ressuscito caminhos esquecidos na areia,
Desenho mapas na memória das águas,
Que carregam segredos para a lua observar. 

Piso suavemente sobre o tempo desbotado,
Revivo o que o sol e a salmoura tentaram apagar,
Nas pegadas, a história se reconta,
Um sussurro de ondas trazendo o passado à tona. 

Sou a ressaca que reconstrói o castelo de areia,
A brisa que reordena os grãos em nova esperança,
E na linha tênue entre o ir e o ficar,
Encontro a essência de todas as partidas e chegadas.

Vizinho

Se não sabe, escrevo para o meu vizinho. Mas só escrevo quando me empolgo, ou quando o frio, como o de hoje, me convida a refletir. Meu vizinho é uma vitrine, uma grama artificial, um espetáculo de fogos artificiais vindos diretamente da China. Veja bem, outro dia percebi que ele possui uma vasta coleção de bonecas, um colecionador, ao que parece. Alguns dizem que é uma mania hereditária, algo para o qual não sei ao certo dar nome. O que realmente importa é que as mãos das bonecas do meu vizinho são apenas isso: mãos de bonecas.

A princípio, pensei que meu vizinho buscasse aceitação para ser quem é, talvez precisasse de permissão para ser gay. Com o tempo, entendi que se tratava, na verdade, de uma questão de gosto, uma indefinição que não cabe em julgamentos simplistas. Senti compaixão... Meu vizinho carece de afagos, pobre coitado. Nos seus lençóis não se encontra a benevolência, e isso me entristece. Mas, quem sabe, estou errada. Talvez meu vizinho possua uma sirene caleidoscópica de alta definição, algo capaz de iluminar o caminho até o farol dos Açores.

Certa vez, ele tentou conquistar algumas raparigas, valendo-se de truques de Photoshop. Na ocasião, faltavam-lhe cestas básicas, a conta de luz quase a ser cortada, e ele fez até beicinho, suplicando às raparigas, aos bancos, aos agiotas..., mas em vão. Nem sacerdote algum pôde mudar a sua sorte. Meu vizinho sempre brinca de ser manhoso, joga com o fogo, mas nada lhe acontece. Contudo, quem nunca se queimou sabe muito pouco sobre a vida, não é verdade?

Sem tempo para ver o tempo passar, ele cria alfabetos de sal, de cá para lá, acolá. Sim, meu vizinho é um sobrenaturalista, sofre de uma trágica utopia. Dizem que já aparou um raio com os dentes; eu mesma vi, quando ele foi convidado a participar das políticas públicas. Com um estalo, aparou o raio, chamuscou apenas os cabelos, mas salvou quatro vidas, todas bonecas. As velhotas em volta, essas não tiveram a mesma sorte. Meu vizinho, no fundo, tem vocação para super-herói.

Outro dia, ao passar por ele, cumprimentei:
— Bom dia, vizinho!
— Bons dias, vizinha — respondeu.
— Como estás?
— Estou com o umbigo a doer, a correr para o nada. Preciso colocar o Coiso na Coisa, acender umas velas, queimar uns incensos, bater um tambor, rodar sete vezes no mesmo lugar, tocar em algo que brilha, inventar um contexto rebelde, falar sozinho, sacar o relógio d'água, brigar comigo mesmo, dar de beber aos meus 'mins'.
E ele não parava de falar, até dobrar a esquina. E eu só lhe tinha dado bom dia.


Conspirações do Trono Desencantado


 Ah, sabia, sim, que tinhas uma morada improvável,
um degrau de árvore como trono de rei desencantado,
onde as folhas te cochicham conspirações de insetos
e, a cada noite, ensaias monólogos para o musgo.
Vi-te a inventar mundos a partir do que outros abandonaram,
pálpebras invisíveis, claro — a última moda no país dos cegos!
Ali, entre um arrastar de móveis imaginários
e perfumes vazios com cheiro de ontem,
plantaste a tua dor como uma plantinha decorativa,
regada com as lágrimas de três mil poetas em fim de carreira.
E sim, há rumores que Deus te bate à porta
à procura de um trocado ou uma conversa fiada;
o que não sabes é que ele deixou o infinito à deriva
para viver das sobras da tua imaginação folclórica.
Nesse teu quintal peculiar, as facas florescem em abril,
e os garfos pendem como frutos da árvore do absurdo.
Ouvi dizer que na última visão foste o protagonista,
apresentado com honras e fanfarras imaginárias.
E então, foste visto a dançar uma valsa fúnebre
com memórias mamíferas, enquanto os mortos te aplaudem
como se estivesses a um passo de um prémio póstumo.
Mas olha, para onde vais, o vazio é mobília de luxo,
e decoradores de interiores ficam à porta.
A tua viagem é um tour de força por dentro de ti,
uma excursão surreal com guias que não sabem voltar.
Talvez, no final, só reste o branco — claro, o branco absoluto,
com direito a um último suspiro,
mas agora em grande estilo:
como uma piada interna do universo a teu respeito.

No relógio do céu, as horas derretem


No relógio do céu, as horas derretem,
Sobre a cidade, chovem peixes prateados.
Na rua, um velho piano toca sozinho,
Sob a luz de uma lua que respira.

Em cada esquina, um sonho esquecido,
E no peito, um coração de vidro,
Que pulsa ao som da chuva que canta,
Dançando com sombras que nunca dormem.

Lá, onde o vento sussurra segredos antigos,
Folhas de outono giram em um vórtice dourado,
Ecoando passos de dançarinos invisíveis
Que deixam suas marcas na calçada molhada.

Uma gata vaga, de olhos como faróis,
Reflete as estrelas errantes em seu olhar,
Deslizando entre as vielas, um fantasma silencioso,
Guardiã dos mistérios que a noite traz.

Nesse teatro de sombras e luz,
Cada momento flui como um rio de prata,
Onde o tempo para, ouve e sussurra:
“A beleza está no efêmero, no eterno recomeçar.”


Para quem tem ouvidos, eu mando bocas


Caríssimos Sucupirenses! Queridos e atentos cidadãos desta terra, honrados veteranos do nosso seleto grupo de observadores e ouvintes de primeira linha! Permitam-me erguer a voz neste centro glorioso, onde a praça é o parlamento e o banco é o trono.

Ah, Sucupira! Terra onde até o vento sabe cochichar, onde até o sabiá conta as novidades! Aqui, meus caros, a quinta-feira não é um dia qualquer: é dia de audiência pública, de inspeção, de apuração. Sentamos em volta desta praça como os nobres senadores, atentos aos movimentos de quem passa e de quem fica. Ora, que venham, pois estamos prontos! Afinal, não existe assunto pequeno para o ouvido bem treinado de um sucupirense.

E cá estamos, numa praça onde até o silêncio é fofoqueiro, e os bons dias vêm temperados com perguntas que mais parecem um interrogatório: “Como está o seu marido, ainda trabalha na capital?” – como se o marido já tivesse dado entrada na caixa. “E o seu filho, é verdade que casou com a fulana da loja de tecidos?” – como se fosse uma união secreta da realeza! Vejam bem, em Sucupira, as perguntas são feitas com o entusiasmo de quem não quer perder uma vírgula.

Mas digo-vos, queridos, a fofoca, aqui em Sucupira, é mais do que um hábito: é uma tradição cultural! Alguém por acaso se lembra do que existe além dos muros da nossa amada cidade? Ora, ninguém tem tempo para o mundo lá fora! Se é que ele existe mesmo. Aqui, a vida de cada um é a nossa própria novela. E que novela! O drama da semana passada, o mistério de ontem, a revelação do dia de hoje!
E quando a boca é bem informada, o ouvido é todo atenção.

Permitam-me, então, que eu mande aqui uma palavra de respeito e gratidão aos que sabem ouvir e sabem falar. A esses senhores e senhoras que compõem o fiel público deste espetáculo sem fim que é a nossa cidade. Pois de que vale uma boca sem um ouvido atento, não é mesmo? E aqui, meu povo, a audiência nunca falta! Sucupira inteira é uma grande sala de estar – e o sofá somos todos nós, alinhados e prontos para acolher a conversa.

Ah, que nunca nos faltem as notícias frescas do padeiro que chegou tarde, da professora que mudou o penteado ou do vereador que foi visto com aquela prima da vizinha do irmão do cunhado… E assim seguimos! Para quem tem ouvidos, eu mando bocas! E que este ato de bem informar seja o elo que nos une, a cola que nos mantém.

Então, Sucupira, pode continuar sentada nos seus bancos e firmando os olhos no que interessa. Pois, enquanto eu tiver voz e vocês tiverem ouvidos, nada nos escapará. E assim seguimos, firmes, na nossa mais nobre tradição: a de contar a vida dos outros, com elegância e precisão!