"Entre Peças e Neblina"

ali onde os nomes ainda não sabem que são ditos.
e se me procura, procura no vão entre as peças.

onde um rosto antes da sombra já era véu,
onde um passo antes do chão já era queda,
gasto meu tempo na curva do invisível.

o vento sabe onde estão as folhas caídas,
mas não as denuncia.
nem nome que deslize entre as fendas,
não há pressa no que já está previsto.

mas só quem já dormiu entre espelhos os lê.
a língua entalha sigilos na bruma,
é o que mudou ou a escuta que finge?
se um eco veste nova pele.

"Não é o Nome Que Arde?"

se a cinza toca o vento,
o que sobra é fogo ou sombra?

o verbo esquece a boca que o disse,
mas não o mundo que o escutou.

se a carne fenece antes da palavra,
como pode a morte ser ponto?

as águas que nunca viste
cantavam teu nome
antes que o aprendesses.

e se ninguém o pronunciou,
como pode ter sido silêncio?

o que será de ti depois de morto?
o que sempre foste,
mas nunca soubeste dizer.

"Antes do Pulso"

o fôlego veio antes do peito,
mas não soube se era ar ou vento.

o chão quis ser passo,
mas hesitou no peso do corpo.

no vidro, um rosto quase-forma,
antes do espelho decidir refletir.

se a vida piscou antes de nascer,
quem viu primeiro: o olho ou a luz?

"O Espelho Quebra de Dentro"

se o reflexo não mente
ou mente ao não ser
o que se espera ver

será a rachadura no vidro
ou a sombra por trás do rosto
que desenha o vazio?

os olhos, essas poças paradas
espelham ou escondem?

e ainda assim
quem não vê, vê melhor
porque sente o que falta

o vidro estilhaça ao toque leve
e o que sobra?
um olhar sem moldura

que enfim se vê inteiro
justo quando
para de procurar

"Debaixo do Mesmo"

às vezes toda dor faz sentido,
ou talvez finja fazer —
como a chuva que cai enviesada,
desenhando espirais invisíveis,
mesmo quando o guarda-chuva tenta proteger.

mais vale rir e seguir em frente
do que deixar a tempestade desarrumar o cabelo.
mas a água sempre encontra um caminho,
escorrendo pelas rachaduras que a alma finge não ter.

estás a ver? o chão espelha o céu,
e ninguém repara,
os passos são gotas escorrendo
em direção ao aspirador —
um vórtice faminto que engole o que escapa.

– reparaste como a chuva sempre tem pressa?
– ou talvez sejamos nós,
correndo demais para fugir
de algo que só quer nos molhar.

abaixa, olha, oh! trovões riscaram o céu,
como crianças entediadas rabiscando um caderno velho.
mas aqui embaixo,
o guarda-chuva é pequeno demais
para dois silêncios. não acha?

o sorriso é mesmo um vinco lindo na pele,
frágil como papel molhado.
– leu o seu horóscopo hoje?
pensei em um café quente,
agora imagine o fim do universo em câmera lenta,
um colapso sereno, sem aplausos.

os pingos batem no tecido tenso
e escorrem, parece desenhar mapas
de lugares que só existem no erro,
como frases que desistem de ser ditas
no exato momento em que quase ganham voz.

– a vida é só isso?
chuva e esquinas que a gente nunca dobra?
– não. às vezes tem bolo,
ou um abraço que dura mais que o esperado.

a ironia pinga do céu
e mistura-se ao riso contido.
a cidade curva-se sob a água, mas eles seguem,
descompassados,
cada um carrega a sua própria enchente.

e quando a chuva para,
nenhum dos dois percebe —
estão molhados demais por dentro.

"O Abismo que Respira"


_Paulo Abreu - Brazilian Visual Artist_

Há um mar onde o tempo não se curva e as margens nunca existiram. Um mar que se nega à cartografia, onde bússolas enlouquecem e astrolábios se dissolvem como açúcar na língua. Nele, um barulho incessante pulsa sob a pele líquida do mundo, um ecossistema costeiro, um monstruoso adorno que respira na cadência das ondas.
Eu já fui. E voltei. Retornei com o sal entranhado nos ossos e um olhar que não se esgota. No peito, ainda ressoam os estalos das velas rasgadas pelo vento do indizível. Agora observe, não com a indiferença dos que hesitam à beira do precipício, mas com a sabedoria de quem já se dissolveu e emergiu de volta, não igual, mas outro.
Já estive no epicentro do furacão, onde os gritos não encontram eco. Já vi os pássaros partirem sem deixar sombra e senti a pele do oceano se abrir para engolir a luz. Aprendi que o abismo não pede, mas exige. Que não é o corpo que se afunda, mas uma ideia de si. E que, para ir além do além, é preciso primeiro rasgar-se em silêncio, dissolver-se no inaudito.
Agora, do outro lado da travessia, vejo os que hesitam na borda do desconhecido, olhos cravados no horizonte como náufragos de terra firme. Perguntem sobre o fundo, sobre as sereias e os monstros, mas nunca sobre o silêncio que tudo engole. Não sabemos que há uma linha onde os nomes se desmancham e só resta a substância crua da existência.
Mas o além não se descreve. O além se pressente, se escuta no marulhar das marés, se sente na contração do peito antes da queda. Ele não precisa de testemunhas, mas de cúmplices.
E aqueles que nunca partiram talvez nunca entendam. Mas aqueles que já se lançaram, que já se diluíram no oceano sem margens, sabem esses. E, no mais íntimo do olhar, carregam o mesmo segredo: não há volta para quem já tocou o infinito.

"Disfarces de Marias"


Marias pairavam sobre as feiras, os pubs e os cabides de liquidação como pombinhas em penitência, orbitando um nada qualquer com a ilusão de liberdade. Ah, pobres Marias, que confundiam movimento com fuga, esquecimento com redenção. Como se o tempo, esse velho embusteiro de cartola puída, tivesse intenção de passar. Como se ele não se deliciasse em dobrar esquinas e dar de cara com o próprio rastro.

Cresciam, mas sem substância, sem peso. Cresciam apenas como cresce o eco numa sala vazia. Condenadas ao compasso morno de um dia que se repete, sem nunca se completar, deslizavam por entre suas rotinas como figurantes de um enredo sem autor. Amavam-se, porque era isso que as mocinhas bem-intencionadas deviam fazer, como se o mundo fosse um espelho mal polido, refletindo suas verdades sem contestá-las. Afinal, maridos, preconceitos e filhos estavam lá, mas quem disse que era papel delas questionar o imutável? Melhor bordar a resignação com fios de autoengano.

Vestiam-se de freiras, bruxas, Chanel — encharcadas em disfarces que apenas sofisticavam suas prisões.
A moda mudava, mas o olhar se mantinha imóvel, previsível, feito eco de anteontem. No fundo, o único luxo verdadeiro que se permitiam era uma ternura distraída por aquilo que temiam entender: o desconhecido.

Na praça, lá estavam elas, abraçadas umas nas outras, rumurosas certezas que nunca furavam a crosta do senso comum. E diziam, num suspiro trágico de quem descobriu o segredo do universo e não gostou:

— A verdade, Maria, mora exatamente onde minhas mãos não alcançam, onde meus olhos se perdem... Concordas?

— Ai, Jesus... Mas que nos poupe da revelação.

E o tempo, esse cafajeste incorrigível, dobrou-se sobre elas como um véu que encobre sem nunca revelar.

"AcoRda CaoS"

queime os mapas,
o incêndio não pede permissão,
sopro que vem de outro tempo,
segredo que se dissolve na espera,
deslize dorsal irrepetível e único—
um arrepio longo.

abra os olhos e sinta
o que nunca foi visto,
vá além do jugo do impossível,
atravesse poentes invisíveis,
destrone a lógica,
rasgue a ordem escrita em pedra,
cante com a língua dobrada ao caos,
nome que ninguém lembra,
desdobre o véu que cai,
respire de novo o novo.

quebre os limites,
deslize sobre a explosão da escuta,
a música rói o silêncio contra o espelho,
ao soletrar versos pela boca.
seja absurda[mente] respiração,
na curva, dissolve-se líquida voz,
desacate o instante e os sentidos,
incendeie o fazer novo.

"Dentro Mar"

 

dentro mar,
mar adentro,
no mais dentro mar,
perto do precipício,
onde a rebentação rasga pássaros em voo,
barcos engrenados em sede,
sem bússola, sem freio, sem dono,
desnuda-te frente ao coração em chamas,
contorna o relógio lunar,
abandona a ordem,
desafia o tempo,
suspende o movimento.

a desmastrar o medo,
destrói os portões, os dogmas, os muros,
perdes-te em mordidas fundas,
a curva inteira a marulhar
no ventre indomável da maré.
geme, ruge, insurrecta,
o tom sobre o som da entrega,
o desejo em revolta,
a penetração exata da insubmissão,
o alicerce incendiado de um mundo dissoluto.
lança primeiro o corpo,
contra a contramão pulsante da sombra febril,
contra a mão do tempo que dita,
contra a mão da ordem que cala.
diante de nós, o ofício dos gestos,
livres, sem nome, sem leis,
somente corpo, onda, incêndio.

"Céu Desdobrado"

Impronunciável, a vida
estica-se além do tempo,
como se cada instante fosse líquido,
um salto invisível na pele do vento.

Fecham os olhos,
desfazem-se em liberdade,
despencam para cima,
onde o ar é um Criador sem rosto.

Vagarosamente, asas brotam da dúvida,
e o impulso se curva ao voo.
As aves reparam os passos do horizonte
enquanto o céu aprende a caminhar.



Poucas incertezas para muitos excessos

no que quase não se diz,
no breve,
o essencial se revela.
quem não enxerga,
carrega o peso do demasiado,
preso a pressas,
a medidas,
a conceitos prontos.

o essencial se revela
no breve,
no que quase não se diz.


e danço
à deriva — de ser um búzio
experimento a leveza
no ir e vir.
faz chuva por dentro da areia,
a maresia traduz-me o som.
um ruído leve entre as árvores,
ao longe ouço os corais.
sigo passos maiores que os meus
a camuflar-me entre as folhas.
visto-me de natureza
danço

"Então..."

Sou apenas o eco,
não a voz.
Sou a estrela que te observa,
mesmo quando não olhas para cima.
Sou o meio do caminho
entre a queda e o voo,
entre a partida e o encontro.
Não te chamo.
Apenas espero que te descubras
no reflexo da ausência.

Entretanto...

Fuja.
Sim, fuja...
mas não para longe.
Fuja para dentro,
onde os labirintos do teu ser
ainda desconhecem a saída,
e o centro se refaz a cada passo.

Fuja,
não como quem teme,
mas como quem não aceita limites,
como quem salta do abismo,
sabendo que as asas nascerão
no instante do voo.

Fuja dos muros de papel,
dos relógios que pesam nos pulsos,
do silêncio que finge ser paz.
Fuja dos roteiros já escritos
por mãos alheias.
Corte os fios invisíveis
que amarram teus pés ao previsível.

Mas lembra:
ao fugir, estarás também voltando,
porque aquilo que buscas
sempre te esperou
no lugar de onde pensaste escapar.

E se precisas de mais mistério,
corre,
mas nunca de ti mesma.

Então... para onde fugiremos agora?

"Tu vais."

Não vou.
Fico, aqui, onde o chão ainda estala,
onde os muros sussurram segredos
que ninguém mais ouve.

Não vou.
Ainda quero sentir o peso das minhas raízes,
saber até onde o silêncio suporta
o meu próprio nome.

Tu vais...
Não vou.
Porque o abismo pode esperar,
porque há um voo que só se faz parado,
em queda lenta,
como uma folha que se recusa a tocar o chão.

E quando tudo se esgota,
é na imobilidade que se encontram
os pontos que o tempo tenta apagar.

"Ascendo"

calo a mesmice.
nutro-me de éter,
acolho o último raio,
um brilho que floresce, intocado,
pulsando nas extremidades.

nos umbrais do instante,
meus lábios entoam,
o riso vibra, livre.
auroras curvam-se ao meu passo,
tudo converge ao renascer.
versos em fogo,
persisto,
no instante exato
do encontro com o dia,
inteira, arquiteta de mim.

"Eu, Acaso"

sombra que dança na luz desfeita,
eco que surge, mas logo se deita.
véu que flutua no sopro perdido,
abraço invisível do corte esquecido.

chamam-me Acaso, mas sou movimento,
um giro oculto no próprio momento.
caminho em frestas que o olhar não vê,
bordo o que existe no quase-ser.

"O Jogo das Escolhas"

o dado que rola não dança sozinho,
meus dedos lhe guiam um sutil caminho.
o giro é teu, mas o risco é meu,
sonhos caídos em vácuo do céu.

desfaço certezas, moldo quedas,
com mãos de vento que o tempo seda.
sou sombra de algo que não se explica,
a curva escondida, a escolha que fica.

"As Condições"

minhas condições são bruxas sorrateiras,
vivem nas pedras e nos passos das beiras.
são fórmulas vivas, do chão que range,
do peso que expande, do tempo que tange.

elas são sementes que esperam crescer,
o que em tua alma faz/refaz sem querer.
sussurram verdades em ramos partidos,
costuram os erros, tornam-nos ritos.

"Entre Pontes e Abismo

ergo pontes onde vê abismos,
moldo o caos no teu próprio ritmo.
o salto é teu, mas a dança é minha,
onde a vida se curva e a dúvida caminha.

sou riso que ecoa num fim aparente,
o sopro que guia o que tens pela frente.
sou a moeda que brilha em espiral,
um lampejo eterno, ilusão final.

"O Segredo do Tempo"

ouça o rumor das linhas do espaço,
espirais onde o tempo se faz um laço.
visto o invisível, mistério sem fim,
sopros de vida que vibram em mim.

o vento me leva em sopro e véu,
sou segredo disperso  do céu.
ouça o chamado que nunca descansa –
em mim se encontram as linhas da dança.

"Um Ditado"


Em uma floresta onde o olhar se perde,
uma criatura com penas de rei se esconde.
Seu baile, sob a lua, é um segredo
que a noite guarda sem revelar ao dia.

Ele dança onde ninguém pode ver,
mas deixa uma trilha de cores no ar,
pergunta-me agora, se ousar:
Quando ninguém vê, a dança deixará de ser?

"Chama-se Vida"


Numa sala escura da mente, onde os ecos da consciência reverberam em paredes invisíveis, uma figura solitária caminha. Chama-se Vida, e traz consigo o manto pesado da noite. Cada passo seu, um pulsar de febres intermitentes; cada suspiro, uma névoa de sonhos mal resolvidos.
Não há sol nesta cena, apenas uma lua crescente que joga sombras dançantes sobre um tabuleiro de xadrez esquecido. As peças, inertes, aguardam o toque de um jogador ausente. No entanto, a Vida move-se, inadvertidamente, entre elas, tornando-se peão, rei, torre, numa dança de possibilidades e desespero.
"Presa fácil", sopra ao vento, uma voz que arrasta folhas secas pelo chão de xisto. Mas quem é a presa? E quem estabelece as armadilhas nesta floresta de símbolos e sinais ocultos? A febre arde, recua, e então explode novamente, uma maré que não conhece lua nem calendário, apenas o ritmo imprevisível do coração humano.
Ela se senta ao lado do rio do tempo, cujas águas escuras tecem reflexos de todas as vidas que poderiam ter sido. As estrelas refletem-se nesse espelho líquido, cada uma uma história não contada, uma promessa não cumprida. "E se?" — a pergunta flutua, uma pluma no vento, escapando sempre que se tenta agarrá-la.
Mas então, a aurora. As primeiras luzes infiltram-se sutilmente, tecendo ouro entre os fios de neblina. A Vida levanta-se, seus olhos agora espelhos de um novo dia.
O jogo de xadrez continua, mas as regras mudaram; não mais presa, mas participante ativo, ela move suas peças com uma determinação renovada.
O tabuleiro se expande, engole o horizonte, transforma-se no próprio terreno da existência. E nesse campo vasto e reimaginado, cada passo, cada escolha, ressoa com a promessa de que mesmo as sombras mais longas são simplesmente prelúdios da luz.
Assim caminha a Vida, tecendo entre febres e sonhos, entre presas e predadores, um fio de prata em um céu que amanhece eternamente.

"Tiro no Pé - Eco Distante"

Em círculos de sombras tecidos,
Onde ruídos dançam com o silêncio,
Muitos se escondem, firmes, decididos
A criticar o que brilha com incandescência.

Com ardor, defendem seu recanto solitário,
Proclamam a pureza do seu isolado canto,
Mas ao julgar o brilho alheio, extraordinário,
Não veem que cegam o próprio encanto.

"Permaneçam no eco do eco", dizem,
Como se o silêncio fosse ouro,
Esquecendo que no palco do mundo, enfim,
Cada voz acrescenta um novo tesouro.

Ao desdenhar o desvario e a paixão,
E ao pintar a arte alheia como desacerto,
Miram, sem ver, no próprio coração,
E disparam, sem querer, no próprio peito.

Será que não percebem que o tiro, ao findar,
Não só fere o alvo, mas também o atirador?
Cada crítica áspera ao expressar,
Ecoa de volta, ampliada em dor.

Que escolhamos, então, celebrar cada tentativa,
Cada esforço para tocar o céu estrelado,
Pois é na imperfeição que a arte cativa,
E em cada falha que somos iluminados.

O tiro no pé, uma lição aprendida,
Nos ensina que no eco dos julgamentos,
Encontramos uma voz, outrora perdida,
Que canta, apesar dos confinamentos.