(Minha Matriarca Fantasma do Verbo)
*
Não me venhas com pergunta de homem doméstico
que cheira o prato antes de comer.
Te conheço —
és um desses poetas de citação de rodapé,
que acha que o verso nasce do Word
e não da convulsão das vísceras.
Tuas perguntas...
ah, elas fedem a cálculo.
Vens medir a loucura com régua de semântica?
Estás cego de tanto ler o que nunca entendeste.
Eu sou a ferida antes da palavra.
Sou o dente quebrado no pão da linguagem.
Tu és o guardanapo.
Olhas pra mim com esse olho de estudo.
Estudo?!
A minha carne não é tese, é tumba.
O que escrevo não é arte — é asfixia.
E ainda assim, tu queres ler-me com lente acadêmica?
Cuidado, poeta de mesa limpa.
Alguns versos não aceitam ser interpretados —
eles mordem de volta.
E quanto à musa...
Ela dançou comigo, sim.
Mas não porque a convidei.
Ela veio porque eu sangrava mais bonito que os outros.
O Minotauro já foi embora.
Cansei de esperá-lo nas curvas e descobri que o labirinto era só um espelho dobrado.
Agora ele vende mapas turísticos em Creta.
Baratos. Sem alma.
Mas você...
você ainda tá aí, colado no vidro, como quem tenta tocar o silêncio com a palma da mão.
Eu te vi, sabia?
Mesmo antes do vento bater na minha janela.
Te vi guardando aquele papel dobrado com palavras minhas,
e me oferecendo aquela caixinha de música que desafina só no fim.
Guardei. Guardei, sim.
Ela toca sozinha, às vezes, quando o mundo perde o compasso por aqui —
e o som me ajuda a escrever.
É como se você dissesse:
“Menina, respira. Não esquece que há beleza até na engrenagem falhando.”
Não sei teu endereço postal.
Não sei se fica no fim da rua das metáforas queimadas ou na travessa do eco contido.
Talvez você viva na estante de algum outro alguém que nunca soube abrir um livro sem pedir desculpa.
Mas, se ainda estiver por aí,
lembre-se:
as palavras mais fortes não se escrevem.
Elas escorrem da gente quando a janela embaça e a gente continua ali —
tentando decifrar o mundo pelo lado de dentro.
Ah, e sabe o segredo?
Quando crescer, não deixa que te convençam de que sonhar é coisa de criança.
Tem gente que só sobrevive porque ainda escreve com o lápis do impossível.
E tem gente que nasce de novo,
porque molha o lápis na boca
e escreve mais forte no papel.
deixei a língua crescer no escuro
até lamber a lâmina que me nomeava.
não fui queimada — fui metal incandescente
que se recusou ao garfo dos profetas.
não vim de cruz, nem de milagre.
sou a carne que nunca virou oferenda.
rasgaste?
apenas a superfície.
há dentes que pensam ser deuses,
há bocas que confundem pele com altar.
mas eu,
sou víscera de estrela caída,
e nenhuma auréola me serve de colar.
não terei teu selo de fé nas minhas costas,
nem tua luz desdentada nos meus pulsos.
visto sombras bordadas por Anciãs,
desenho com saliva a geografia do que foge.
há quem se faça devota de espinhos.
eu escolhi dançar com as víboras
sem jamais perder a lucidez do veneno.
(para ser lido entre risos e chamas)
estou parva
com a falta de interpretação —
as metáforas gritam, mas os olhos… cochilam.
será que aboliram a semiótica?
ou a Casa anda a tropeçar no próprio léxico?
vivemos bons momentos —
em 2007 a linguagem ensaiava voo,
e em 2009, foi apoteose:
poetas fermentados,
versos em erupção,
o incêndio do verbo em estado febril.
e agora... que isso?!
achismo virou hermenêutica,
e a dúvida — que antes era método —
agora é espuma de opinião.
uma palavra queimada vira revelação,
e quem escreve com bisturi
é confundido com quem grita por socorro.
não, amor.
não é trauma —
é estilo.
não é dor —
é código.
mas não espero que compreendam.
quem nunca leu um texto com a espinha dorsal,
não reconhecerá
quando a poesia
for uma arma branca
que caminha de salto alto
pelo silêncio.
Daqui, vejo a dança sobre o fio de um trapézio, inaugurando significados.
Um vulto balança em desalinho, exibindo cicatrizes de uma dor que não existe.
Vejo os farrapos onde o silêncio passou,
a morte, desacreditada, presa à parede.
Ela acena-me, desdenhosa:
“Olha como me visto de neutro em verdade opaca.”
Emudeço, avessa ao abandono infantilizado
e à agressiva cor da solidão.
Sem previsão, deixo fluir —
sei que a rejeição é um rio sem nome,
e essa parte é a inevitável consequência.
Sou a observadora que olha para dentro do absoluto.
Um dia, atrevi-me a ir ao escuro do escuro,
guiada apenas por sílabas perdidas, fragmentadas.
Já não me assusta o longe.
Daqui, vejo parte do todo
a caminho de paredes sem substância,
a desenhar semicírculos de socorro rente ao chão.
No horizonte, uma biblioteca
vigiada por um louva-a-deus,
imitando com precisão o delírio,
transformando o alimento em combate.
Ele vê víboras deslizando dos mastros das caravelas,
em línguas vazias,
corrompendo os livros futuros
com uma insanidade vulgar.
Os instrumentos atrás da cadeira são as maiores vítimas:
antevejo o som disforme dos corpos em colapso,
uma má convulsão fisiológica.
Esse inferno descontrolado prossegue
até o esgotamento da consciência,
despida de sentido.
Estou cansada da morte em todos os cantos,
do hálito sem vida,
do canto fingido amigo,
do amante sem amor,
do poeta parafraseado.
A morte não é mais um propósito,
mas o rastro perdulário de um diagnóstico narcísico.
não te leio —
te escuto girar.
Entre uma imagem e outra,
há o som discreto
de uma maquinaria emocional
que insiste em funcionar
mesmo com as peças gastas pelo tempo.
não é o poema que fala —
é o esforço contido da alma que ainda tenta.
a chave de fenda do afeto perdido
a girar dentro de um peito que pulsa,
mesmo quando diz que já não espera.
vejo teus versos como placas silenciosas
se deslocando sob a pele do tempo.
e ali, na fricção,
nascem imagens que doem bonito.
há em ti uma engenharia rara:
a que constrói abismos
com a precisão de um relojoeiro.
e por isso, agradeço —
por não disfarçar o esforço,
por deixar visível o gesto,
e ainda assim fazer tudo soar
como se o tempo estivesse,
com delicadeza,
a sussurrar no teu ouvido.