"Conversa à Beira do Silêncio"


Vejo-te a consertar óculos partidos.
Um suspiro escapa-te dos dedos,
como quem fala com o invisível.
O gesto subtil carrega a fé nos teus olhos,
o peso de algo que não se pode nomear.

Cruzas as pernas como um verso esquecido.
Cada curva do teu ser desenha uma nota
num silêncio que nos observa.
O olhar dispensa perguntas.
A presença basta.
As respostas flutuam,
grãos de luz suspensos entre nós.

Há coisas que não se explicam,
apenas se sentem.
Saudade de algo que sempre existiu,
uma ausência tão intacta
que a alma reconhece antes de nomeá-la.
O vazio pulsa na pausa dos gestos,
tempo suspenso, prestes a tombar.

Os desníveis da tua sombra movem-se devagar.
As pedras colecionadas sustentam passos,
os que avançam, os que se perdem,
os que nunca partiram.

Uma luz ténue atravessa o espaço.
Tons de âmbar tingem o chão.
As paredes respiram.
A sala oscila ligeiramente,
como se escutasse o próprio silêncio,
como se soubesse que nunca existiu.

O silêncio tece diálogos intermináveis.
As pedras não são apenas chão –
são vestígios de histórias,
raízes espalhadas pela ausência.

Entre o gesto e a pausa,
o tempo dobra-se sobre si mesmo.
A música repousa
na borda do que somos.

"O Vazio que Ressoa"

 

A culpa é do vazio.
Um sino cavo na garganta do tempo.
Nos porões e nas escotilhas,
o silêncio devora tudo.
Se Deus é um álibi,
dissolve-se agora no ar.

Atreve-te a tocar os nervos do proibido.
Cose o sentir como quem molda tempestades.
O que os teus dedos tocam,
também te refaz.

Os porões abrem-se lentamente.
O vazio escapa,
um hálito morno sobre a nuca.
A escotilha revela mares internos,
onde a ausência dança incendiada.

O que ruía, germina.
O tempo curva-se sobre si,
um animal sem forma,
sem rosto,
sem pressa de ser compreendido.
A alma multiplica-se,
não como ruína,
mas como semente,
broto no ventre do silêncio.

Os poemas despertam.
Cada verso desprende-se da página
Como um pássaro cego,
tentando tocar o sol na garganta.
As palavras ganham pele.
A pele, cicatrizes douradas.
O coração, enterrado nos ossos da palavra,
lateja irregular, feroz.

E tu, leitor, sentes isso?
A matéria dissolve-se.
Um líquido escorre entre os dedos.
O vazio torna-se cântico.
As páginas, portais.
O espaço abre-se.
O som dobra-se.
O tempo, suspenso,
prestes a tombar.

E a tua voz, antes tão humana,
estica-se até ao infinito,
num tom que não cabe no tempo.

Ao deitar-te sobre o poema,
sentes o peso das estrelas.
O coração, translúcido,
revela-se:
um altar onde o tempo se ajoelha e
— por um instante —
tudo silencia.

"A grandeza de Não Ser Um Raso Qualquer"

Sucupira acordou com um vento estranho. Não era o sopro da brisa matinal, mas aquele vento que levanta poeira e expõe o que estava escondido debaixo do tapete. A praça principal, usualmente cenário de fofocas amenas e histórias mal contadas, tornou-se palco de algo inédito: uma epifania coletiva sobre a rasura humana.
Logo cedo, Dona Zuzu, conhecida pelos bolos queimados e opiniões fervorosas, já estava a postos no coreto, gritando com toda a força:— Gente rasa, minha gente, é igual bolo que não cresce. Você pode até fingir que é sobremesa, mas ninguém acredita!
Era um facto. Ninguém em Sucupira confiava num raso. Não importava se era da direita ou da esquerda, da família dos Pacheco ou dos Cordeiro, nem mesmo se vestia terno ou chinelo. O problema do raso não era a aparência, mas a falta de consistência. Diziam uma coisa, faziam outra. Argumentavam como quem joga confete, sem sustento nem brilho.
Enquanto Zuzu discursava, Seu Agenor, o filósofo de boteco, recitava: — “Nada é mais simples do que a grandeza; de facto, ser simples é ser grande.” Quem disse isso foi um gringo, mas é verdade aqui também. Só que em Sucupira, a simplicidade virou raridade! Aqui, o povo confunde falar bonito com dizer algo útil. Já viu um raso dar jeito em alguma coisa? Nem eu. Rasos são como vento de tempestade: fazem barulho, mas não molham o chão.
A audiência, que já beirava a plateia de um circo, começou a rir e aplaudir. Até que Dona Clemilda, a rainha do crochê e das indiretas, resolveu dar sua contribuição:
Sabe o que é ser raso? É alguém abrir a boca e você já saber que dali não sai nada profundo.
É tipo sopa sem tempero ou fofoca que não pega no tranco.
Ser raso é ter três camadas de roupa e ainda assim passar frio na alma. É isso!
Sucupira inteira gargalhava. Mas foi quando Lucicleide, com seu vestido florido e sua língua afiada, subiu ao coreto, que a crônica do dia ganhou sua nota mais alta: — Olhem aqui, povo. Eu não sou mulher de dar voltas, então vou dizer: vocês toleram muito raso porque, no fundo, têm preguiça de lidar com gente que provoca pensamento! Raso é fácil de engolir, mas não alimenta. Agora, forte e profundo? Isso desafia. Dá trabalho, mas transforma. Então, vejam bem: escolham entre mastigar a simplicidade ou engasgar com a rasura, porque a vida é curta e eu não tenho tempo para sopa rala!
A praça virou um palco de reflexão inesperada. Ninguém saiu ileso daquele dia. Nem mesmo o prefeito, que, de sua janela, anotava no caderninho: — "Proibir gente rasa em eventos públicos?
Talvez uma boa ideia..."
Sucupira nunca mais foi a mesma. E, enquanto o sol se punha sobre o coreto, a cidade inteira repetia a frase que ficou como eco daquele dia:
“Seja simples, mas não seja raso. Porque até a lama tem profundidade.”
E assim, entre risos e olhares curiosos, o vento de Sucupira se fez poesia. Afinal, não há grandeza sem simplicidade — mas simplicidade sem força é só preguiça bem vestida.

Tapeçaria

Minhas palavras não espantam; elas ecoam.
São penas arrancadas de asas adormecidas,
o vento leva-as por corredores de véus,
onde o tempo esquece o seu nome.

Certo ou errado? Pergunta às portas.
Lógica dorme entre o pó das chaves,
e (in)lógica escreve o seu nome no vidro embaciado.
Os cães não mordem, apenas esperam,
com os olhos fixos no horizonte que se dobra.

Se me observas,
sou o reflexo quebrado na maçaneta,
o calor de mãos que nunca tocaram.
O horizonte treme, as notas deslizam,
e o acorde maior é apenas uma sombra
que ecoa em salas que não existem.

A essência não respira; ela persiste.
As chamas não dançam; elas rastejam
em linhas invisíveis que desenham o chão.
Os cães, elegantes e imóveis,
guarnecem as perguntas como quem cuida de um segredo.

No canto onde o eco se dissolve,
as memórias não se guardam; elas fluem.
Entre nós, não há espaço nem tempo,
apenas o vazio que conhece todos os nomes.

O nunca dito não paira; ele vibra,
uma melodia sem som,
onde o silêncio molda as sombras,
e a luz não ilumina — apenas observa.

Espelho: Observação à Margem

No jogo, prefiro as bordas onduladas,
onde o reflexo vacila entre o real e o inventado,
onde o movimento dança no limiar do nada
e o vazio sussurra gestos invisíveis.

Observar não é estar parado —
é mergulhar no interstício das ondas,
um momento em que me desdobro,
não apenas como sombra, mas como brisa,
decifrando ecos que se recusam a ser som.
Aqui, o silêncio não é ausência,
é um labirinto que desenha a minha voz.

Ao tentar moldar-me, o espelho rasga-se.
Cores que nunca sonhei sangram margens.
A luz tropeça e vira sombra;
os contornos dissolvem-se em significados.
E tudo bem —
porque nem toda travessia me chama.

Fico onde as peças são invisíveis.
Sou o tabuleiro líquido,
as linhas que não se deixam traçar.
Sou quem escuta o murmúrio do espelho,
quem sente as palavras que não foram ditas,
quem compreende que o reflexo mais puro
é aquele que se desfaz na leveza do toque.

Aqui estou, onde o vidro se parte
sem ruído, mas com memória.
Não no reflexo, mas na margem,
onde as asas do olhar repousam.|
Porque às vezes,
é na curva do espaço
que o movimento inteiro se revela.

O Menino que guardava

 


Quando aqui estiveres, lê o que escrevi.
Segura-o como quem toca a Lua com os dedos,
não pelo que encontras,
mas pelo silêncio que cresce nas entrelinhas.
Diz que era um menino que te guardava
num tempo que jamais foi completo,
mas que, na sua imperfeição,
te esculpiu em ecos que o teu olhar nunca alcança.

Um dia, aceitarás que a proximidade
não é o espaço entre as palavras,
mas o compasso entre os meus gestos e os teus,
num abismo que não soubeste selar com passos.
Estarei diante de ti, à margem da tua estrada,
não como uma sombra que se justifica,
mas como um brilho discreto,
onde os vaga-lumes se reúnem, hesitantes,
absorvendo a luz que deixaste no ar.

Descansarás os olhos no tempo que nunca cedeu,
onde as frases que não disseste nasceram
como vidraças partidas,
mostrando o que se dissolveu ao toque.
E carregarás o peso de uma lembrança involuntária,
não para te prender,
mas para lembrar-te que o presente nunca te abandonou.

E então, talvez descubras
o que é ser amada, não nos limites do óbvio,
mas no instante onde o eterno desafia o vazio.
Onde tudo floresce, mesmo sem saberes como,
e o que parece distante
é, ainda assim, tão perto.

"A Casa do Poema"


Era um lugar onde o tempo hesitava. A pedra e o pão dividiam a luz de uma mesa sem cadeiras, enquanto o vento, inquieto, entrava pela janela, como se fosse o guardião. O aroma não era um vazio; era uma presença em surdina, um diálogo sensível que escrevia palavras invisíveis nas margens da tarde. O sol, uma promessa esquecida, inclinava-se sobre o horizonte como quem desiste. O céu, cansado, guardava em seu bolso o eco das perguntas que ninguém fez. E, no espelho do corredor, havia um rosto que nunca pertenceu por completo a quem o olhava. A água escorria do copo esquisito, desenhando mágoas que o calor não sabia derreter. O vaso, órfão de flores, segurava o sol como se este fosse apenas uma moeda antiga. Sombras riscaram o chão em geometrias inúteis, e as ilusões, tímidas, esconderam-se nos cantos. Havia silêncio. Mas o silêncio ali era vivo, um corpo pulsante, um poema a crescer. Os mortos esperavam, imóveis, pelo barulho que nunca vinha, enquanto o firmamento dobrava-se como um lençol gasto, incapaz de cobrir o vazio. Era ali, naquele quilómetro sem nome, que as palavras respiravam. Elas germinavam onde ninguém acreditava, como uma melodia inacabada, como uma casa que se constrói dentro de quem a habita. E, quando a porta se abriu, não foi o mundo que entrou, mas o silêncio que, enfim, se fez carne.

"O que me desenha"


Este é o espaço onde a memória repousa,
um solo onde o tempo descansa como poeira dourada...
... e raízes encontram o céu por dentro da terra.
Os caminhos não seguem lógica,
são linhas traçadas por passos
que ecoam em abismos invisíveis.
E se o silêncio fosse a única resposta?
O que restaria, então?
As minhas mãos, abertas ao vento,
não seguram histórias – deixam-nas partir.
Cada página que o ar toma é uma despedida,
um pedaço do livro que fui e que agora flutua,
guardado em órbitas que só o vazio compreende.
Há um som distante de folhas ao vento,
um cheiro de terra húmida,
mas também uma ausência que pesa.
O coração, sempre atento,
ouve o movimento secreto das coisas que não se veem.
As estações passam como ruído de luz...
... não deixam sinais no chão,
mas sim nas sombras que dançam entre as horas.
Nada realmente se desfaz; tudo persiste,
como um eco moldado pelo silêncio.
Carrego versos que não pertencem ao mundo...
... mas habitam a fronteira entre o visível e o que arde.
Escrevo para construir o que não existe,
para transformar o que foi perdido
em algo que respira novo.
Este é o meu alicerce:
um oceano sem limites,
um enigma que me desenha e se apaga ao mesmo tempo.
E se existir fosse um poema que ninguém lê?
Apenas sente, enquanto flui,
deixando marcas onde ninguém vê.

"Coexistência da Vox"

Persistirá o tempo mesmo sem o tic-tac.
Ocultar-se-á o abrigo, mas a essência da morada permanece.
Novos horizontes nascerão de ventres invisíveis.
Tecerá o divino sua trama, mesmo sem olhares a contemplá-lo.
Ousará a loucura encontrar poesia no absurdo.

Esquecer-se-á o amor do repouso, mas nunca do desejo.
Vazio será palco para o infinito que não cessa.
Indagações perderão as respostas, mas não o eco.
Renúncias se moldarão em novos começos.
Grande é o silêncio onde tudo dorme e tudo desperta.

Uma nova linha sempre haverá de ser escrita.
Louvará o Homem o nada, reconhecendo-se no tudo.
Absolutamente absorto e infindável.

"Do Existir"

Que a poesia não tema
ser mais que o silêncio —
que ela ecoe
o eterno que se desfaz
e o efêmero que persiste.

Há vida nos sentidos
que ousam transbordar
do que cabe nos olhos,
que dançam à beira do abismo
e sorvem a fonte dos mistérios.

Que cada palavra seja lume,
estrela que ascende
e, mesmo ao cair,
persista em faísca,
a incendiar o invisível.

O mundo não termina na pele
nem silencia no som.
Ele vibra no intangível,
nas frestas do improvável,
na coragem de existir
em verso,
em caos,
em tudo.