E talvez isso seja mesmo poesia. Ou só azar.
"O Dia em que o Tempo Devolveu"
"Entre a Guitarra e o Eu-Lírico"
O movimento foi mal interpretado; ele avançou com mais fervor, como se eu fosse o público que ele aguardava. O mar, cúmplice como sempre, enviou uma lufada de ar que nos apertou no pequeno cubículo, como se quisesse garantir que eu experimentasse o concerto completo. Passei o resto da viagem a rezar para que o segundo andar chegasse rápido e para que o cheiro não fosse permeável à roupa.
Mas uma coisa é certa: amanhã vou de escadas.
"As Guardiãs do Sol"
"O que escondes, Bretonino?"
Ainda que o silêncio te faça hesitar
Escrevo-te como quem toca o horizonte no vidro da madrugada.
Dilato o espaço entre as palavras,
abrindo atalhos para que o silêncio te encontre.
As aves, sim, elas nascem no branco,
mas é o teu pedido que lhes dá asas.
Os comboios? Talvez esperem por nós,
talvez aprendam a flutuar,
porque as viagens que plantamos no papel
não obedecem aos trilhos.
A espada ganha paladar no meu gesto;
transformo o frio em mel.
Há tanto em ti que se dissolve em metáforas,
como um segredo ao vento.
E, se morrer é parte de esculpir,
então faço-o sem medo,
sabendo que cada linha
é um pouco de nós que perdura.
Quanto à lua, indigesta ou não,
convido-a a sentar-se.
Faço-lhe um chá de jasmim
e dou-lhe o teu nome como companhia.
Porque, em cada frase que me deixas,
há um mundo inteiro a pedir para nascer.
A Sincronia do Desalinho
Escuto-te como quem contempla um incêndio antigo a devorar o horizonte, um fogo que arde sem pressa, como se soubesse que o tempo é seu aliado. As tuas palavras chegam-me como brasas levadas pelo vento, que cruzam o ar sem tocar a terra. Vejo-te avançar, preso a uma coleira invisível, e cada passo teu ressoa como um trovão distante, como se o chão tremesse por respeitar o peso da tua cólera contida. Falaste-me de alturas, de vistas que enganam. Observo-te descer, não como quem cai, mas como quem retorna ao ventre do desconhecido, um voo ao contrário. Há algo de ritual no teu movimento: tu não perdes altitude, tu entregas-te a ela, como um pássaro que entende que a gravidade é apenas um convite para repousar no inevitável. E a superfície, quando te acolhe, exala o aroma antigo das ferrugens do passado, como se guardasse, no silêncio profundo da terra, os ossos de tudo o que foi esquecido. Quando dizes que fizeste um filho à solidão, vejo-te à beira do silêncio, num quarto onde o ar pesa e o lume já não aquece. Moldas pedaços de vazio em criaturas frágeis, feitas de tinta e eras, poemas que tremem entre ser e não ser. Observo-os como quem olha um ninho suspenso no galho mais alto — pequenos demais para o céu, grandes demais para o esquecimento. Vejo-te sonhar com peixes que voam e mares que se dobram como lençóis. Há algo de bruto e belo nos teus sonhos: são eles que desafiam os limites do que se pode tocar. Permaneces entre o concreto e o impossível, lutando com o invisível, chamando os astros como quem grita num deserto, mesmo sabendo que o eco não responde. Observo-te debater-te contra correntes sem elos, libertar braços que nunca estiveram presos, porque as tuas algemas são feitas de vontade — e há grandeza nisso. És um relógio sem ponteiros, o único capaz de marcar a passagem do desalinho. A faísca que temes é a mesma que te dá forma, um fogo que dança em ti, não para te consumir, mas para te eternizar. Se a vida é uma cidade com ruas apertadas e luzes que vacilam, és aquele que caminha atento às sombras, à procura do que se esconde nas esquinas. Observo-te de longe, em passos, em voz. Os ciclos continuam a girar, mas no teu silêncio partido em dois, ouço a única verdade que importa.
A Realidade, as Aves e o Silêncio
A Ilha Cercada de Palavras
Há quem escreva por passatempo, quem escreva por prazer, e quem escreva porque a escrita é a última tábua de salvação antes de afundar. Para esses últimos, parar é morrer — e morrer é impensável. Talvez escrevam por vício, por necessidade biológica ou por aquela teimosia que só os condenados ao ofício entendem: as palavras têm de sair. Ele, o escritor, é desses. Cada frase é como uma gota do seu sangue. Um sacrifício. Uma transfusão do invisível para o visível. Poucos reparam, mas ele nunca respira fundo entre uma linha e outra. Não quer perder tempo. Talvez tenha medo de que, ao respirar, o fio da memória se rompa ou que a próxima palavra não venha. Talvez saiba que um dia o silêncio virá — e ele não quer estar desarmado quando isso acontecer. Desce as escadas do tempo todos os dias, sem lanterna, com os joelhos esfolados e o coração entre as mãos. Lá no fundo, encontra o menino que foi. Vê-se pequeno, num canto qualquer do passado, a chorar como um anão que implora por centímetros. "Cresce", diz-lhe. "Não há tempo." O menino olha para cima, descrente, enquanto o homem — mais velho e mais cansado — vai caminhando para a frente, cavando no peito um túnel onde só cabem palavras. Escrever, afinal, é o único jeito que ele conhece de se lembrar das coisas sem ser engolido por elas. A memória é um comboio que liga o céu ao seu íntimo. Vai e vem, entre nuvens e abismos. Na infância, achou que a velhice seria uma profecia distante, com letras que nunca conseguiria ler. Hoje, com os olhos ardendo e a caneta a falhar, percebe que as letras estavam lá o tempo todo — só que nunca foram legíveis. Por isso escreve. Escreve para se doer um pouco mais. A dor, ele descobriu, tem um poder curioso: traz imagens vívidas, cheiros esquecidos e vozes que ninguém mais ouve. É como espetar agulhas em si mesmo para despertar fantasmas adormecidos. Quando tudo mais falha, cria um campo fértil, onde as palavras são semeadas e colhidas com um cansaço resignado. À noite, pernoita com os olhos postos em criaturas invisíveis, no meio de florestas onde os animais — selvagens e poéticos — exalam versos no escuro. Lava o rosto numa pia onde corre lava fria. Não há manhãs tranquilas. A escrita nunca lhe dá descanso. A vida à sua volta, com todos os seus ruídos, é o livro que ele ainda não terminou de escrever. Cada momento, cada pessoa, cada gesto, é uma linha por decifrar. Ele escreve porque, ao escrever, entende-se. E porque se entende, resiste. Os pulmões enchem-se, as ilusões retornam, e a morte fica adiada por mais um dia. Quando se dá conta, está sozinho. O seu corpo já é uma ilha. Uma ilha rodeada de livros que ele próprio construiu — página a página, lágrima a lágrima, respiração contida. E ali, naquele silêncio onde poucos se atrevem a chegar, o homem respira finalmente. Não é um respirar fundo, como fazem os que nada temem. É um respirar pequeno, quase imperceptível, mas suficiente para continuar. Amanhã, ele dirá ao menino outra vez: “Cresce”. E o menino acreditará — por mais um dia.
"A Dinâmica do Guarda-Chuva"
Sei que as tuas vinhas crescem, indomadas,
e cada verso é um laço que segura o sopro do vento.
Não apenas as leio—nas noites de sono, eu as vivo;
abrem-se portas em cada linha
para a casa onde ainda moramos, cheia de risos e sussurros antigos.
Sei que o silêncio sob o teu guarda-chuva
é um abrigo mais que da chuva—
guarda segredos, guarda ecos
de palavras antigas que me deixas no ouvido,
e me pergunto se são minhas ou se as sonhei contigo.
Sei que os teus moinhos, com velas que giram frenéticas,
desenham mapas nos céus — cada volta,
uma nova rota de ventos que dançam e nunca se repetem.
E aqui, neste agora tão frágil,
aprendo a respirar livre,
longe do peso urgente do tempo.
Sei que roubas o sal das ondas bravas
e o devolves aos barcos, uma promessa de viagem;
porque pensar, como o mar,
só vive se houver sede de novos horizontes.
E sei, por fim, que num futuro qualquer,
encontraremos o fio dourado que nos une—
pois a infância é a terra à margem deste rio de palavras,
e cada verso nos chama de volta ao início,
onde tudo começou.