"O Dia em que o Tempo Devolveu"

Passei de carro e, juro, vi a flor no asfalto. Mas a flor mal teve tempo de me emocionar, porque logo o farol do meu carro iluminou uma cena ainda mais surreal: um escritor, aparentemente famoso pela cara de desamparo dramático, apanhava de uma mulher com pouco mais de meio metro de altura. Sim, em plena estrada, no meio do nada, com o cosmo e eu a assistir — ou melhor, só eu, porque a estrada estava tão vazia quanto a fé de Sucupira em dias sem fofoca.
Era noite alta, e o cenário parecia saído de um show mal ensaiado. A mulher desferia golpes precisos de judô, karatê, jiu-jitsu, kung fu, boxe, capoeira, muay thai — uma mistura sinistra de tudo isso — enquanto o escritor tentava esquivar-se com a graciosidade de um elefante num campo de tulipas. E eu? Reduzi a velocidade, quase parei. O volante entre as mãos parecia distante, a minha atenção totalmente roubada pela cena. Não era só curiosidade; havia um estranho prazer em assistir. Que delicinhaaaa!
Como é que aquele escritor se metera naquela situação? Seria este o mesmo homem que tentara, num poema infame, urinar contra o Tempo? Pois bem, o Tempo agora devolvia o favor. Era como assistir a uma justiça cósmica, mas também uma metáfora descarada: afinal, quem nunca apanhou de algo que achava ter dominado?
O mais fascinante era que o homem não corria, porque, afinal, não havia para onde ir no meio do nada. Nem sequer pedia socorro; parecia que a voz lhe faltava, como se a poesia tivesse fugido do peito. Aceitava cada bofetada como se fosse o preço a pagar por ser quem era. Talvez fosse mesmo. Ele era conhecido em Sucupira por metáforas absurdas e por circuncidar leões acordados. Mas, ao que parece, nenhuma dessas proezas o preparou para enfrentar tanta "ternura" numa estrada deserta.
Enquanto eu assistia, um pensamento incômodo crescia: por que não fazia nada? Poderia abrir a janela, gritar algo, pelo menos buzinar. Mas fiquei imóvel, cúmplice do absurdo, como se aquele espetáculo fosse uma peça escrita para mim e a única regra fosse não interferir. E se eu atrapalhasse a lição que ele parecia estar a receber?
Quando ela terminou o serviço — porque, sim, houve um fim e eu vi pelo retrovisor —, levantou-se como quem acabara de encerrar um espetáculo. Sem olhar para trás, entrou no carro, ultrapassou-me com uma serenidade angelical e desapareceu no escuro. E o homem? Ficou lá, sentado no meio da estrada, iluminado apenas por uma luzinha ao longe, dessas que balançam no ar em show sertanejo. Talvez esperasse por Deus, por um amigo ou só por coragem para levantar.
Enquanto o carro dela sumia, só pude pensar: que ternura furiosa, cansada de ser apenas "inspiração". Ou seria a própria vida, disfarçada de meio metro de raiva, a lembrar ao escritor que a poesia é bonita, mas não o protege de pancadas quando menos se espera?
Psicologicamente, a cena tinha tudo: a teatralidade de um duelo, o absurdo de uma peça de Ionesco e o humor involuntário de uma comédia barata. O escritor parecia representar todos nós — vulneráveis, apanhando daquilo que não entendemos, enquanto o mundo (ou, no caso, uma sucupirense curiosa) só observa. E eu? Talvez representasse aquele olhar que escolhe o conforto da distância, enquanto a vida acontece em close-up, brutal e honesta.
No final, continuei a dirigir. Mas confesso que ainda pensei em quem faria a crónica primeiro, se ele ou eu. Só que não o fiz. Porque, afinal, a flor no asfalto e o poeta na estrada têm algo em comum: ambos existem para nos lembrar que a vida é ridícula, imprevisível e, acima de tudo, incontrolável.

E talvez isso seja mesmo poesia. Ou só azar.

"Entre a Guitarra e o Eu-Lírico"

Sucupira é uma daquelas cidades que parece testar a sanidade de quem ousa morar aqui. O mar, tão belo à distância, ri-se baixinho das nossas ilusões. Foi esse mar que o corretor usou como isco quando me vendeu este apartamento. Usou a palavra mágica: "tranquilidade". Ah, a tranquilidade! Pintou um arco-íris verbal tão convincente que, se fechar os olhos, quase ouço unicórnios a trotar entre o hall e o elevador. Foi nesse devaneio que assinei o contrato. Mas aqui estou, no epicentro de um pandemónio vertical, onde o único marulho constante é o da insanidade dos vizinhos.
No andar de baixo mora o guitarrista. Um homem de espírito indomável e banho opcional, cuja presença se sente antes de se ver. Ele vive numa bolha própria, onde cada acorde desafinado carrega a força de uma revolução imaginária. Cruzar com ele no elevador é uma experiência transcendental — só que ao contrário. Sempre que abre a boca, sai um manifesto político que nem ele compreende, acompanhado de uma performance física digna de um mosh pit improvisado. Ele aproxima-se como quem desafia o mundo para um duelo, gesticula, grita, e, se estamos num dia particularmente azarado, leva-nos uma cotovelada acidental.
Uma vez, ao cruzar com ele, tentei afastar-me para a parede do elevador.
O movimento foi mal interpretado; ele avançou com mais fervor, como se eu fosse o público que ele aguardava. O mar, cúmplice como sempre, enviou uma lufada de ar que nos apertou no pequeno cubículo, como se quisesse garantir que eu experimentasse o concerto completo. Passei o resto da viagem a rezar para que o segundo andar chegasse rápido e para que o cheiro não fosse permeável à roupa.
No andar de cima vive o escritor. Ah, o poeta trágico, o dramaturgo da própria desgraça! Todas as noites, das oito às onze, trava batalhas épicas com Deus. Por vezes, parece que está a ganhar; outras, parece que está a implorar por um empate. De manhã, transforma o marulho sereno em monólogos rancorosos sobre as injustiças da vida — dir-se-ia que o oceano o ofende pessoalmente. À tarde, o drama atinge o clímax: é a luta visceral com a própria escrita. Frases voam como dardos imaginários e, pelo que percebo, o público invisível nas suas alucinações críticas é implacável. Vive com as janelas cerradas, não por pudor, mas por medo de que uma simples brisa leve as suas páginas aos olhos de um crítico literário.
E eu? No meio deste teatro grotesco, finjo que ainda acredito no arco-íris que o corretor me vendeu. Trabalho o dia todo e volto para casa com a esperança ingénua de encontrar silêncio. Mas paz aqui é como um peixinho dourado num aquário quebrado: escapa por entre os dedos enquanto o guitarrista dá um concerto subterrâneo e o escritor, lá em cima, recita o epitáfio da humanidade.
Mudei-me para cá na esperança de fazer um bom investimento, convencida pelas promessas de serenidade e pelo encanto de viver junto ao mar. Agora, questiono-me se troquei uma ilusão por outra. Será que comprei tranquilidade ou apenas um bilhete para este teatro de absurdos? Talvez o corretor tenha razão. Em Sucupira, tranquilidade é relativa. Pelo menos o mar está sempre ali, a gargalhar, por me ver refém deste mosh pit literário e existencial desta vizinhança.

Mas uma coisa é certa: amanhã vou de escadas.

"As Guardiãs do Sol"


Dizem que, em tempos antigos, essas figuras alinhadas sob as folhas ouviram segredos de viajantes incautos. Estavam sempre lá, estáticas, enquanto os passantes sussurravam confidências ao vento, acreditando que ninguém escutava. Mas elas escutavam. Absorviam cada palavra como quem colhe frutos num pomar abandonado. Guardaram os sóis do verão em seus mantos, vestindo-se de memórias douradas.
Então veio a chuva. Fecharam-se. Fecharam-se para o mundo e para os sussurros que antes recolhiam. Alinhadas, mastigavam os segredos em silêncio, triturando-os como quem saboreia um doce enigmático. A cada trovão, ruminavam conspirações, e quando o último raio cruzou o céu, transformaram-se.
Eram agora bruxas. Alçaram voo, uma a uma, sem olhar para trás. Subiram até uma torre esquecida, onde o vento se curva e os trovões respeitam o silêncio. Dizem que lá continuam a mastigar o que sabem, esperando o dia em que, juntas, soltarão os segredos acumulados em forma de tempestade.

"O que escondes, Bretonino?"


Havia um tempo em que frequentávamos um templo escondido por entre muralhas de pensamento.
Não havia caminho direto até ele, apenas fendas e labirintos. Chegar ali era um ato de desprendimento — não das coisas físicas, mas dos fios que sustentavam a razão. Era preciso deixar a lógica pendurada do lado de fora, como casacos em um dia de sol que insiste em ser frio.
Por entre as fendas, observávamos um poeta. Ele pendurava solidões em cabides invisíveis, como quem decora a própria alma para receber um hóspede que nunca chega. Os cabides balouçavam ao vento que não existia, e os pássaros mediterrânicos pousavam para assistir. Eles não cantavam. Apenas estavam ali, como funcionários sofridos, marcando presença sem alarde.
Em uma das mãos do poeta, havia uma laranja, melancolicamente pálida. Não era fruta, nem cor. Era um sol aposentado, um círculo de abandono exposto como se fosse apenas mais um objeto em vitrines baratas. O poeta olhava para ela com uma insistência que beirava a devoção. Talvez visse nela algo que ninguém mais poderia enxergar: o tempo que não volta, a doçura que se perde, ou apenas a cor que não combina com as sombras ao redor.
Entretanto — e há sempre um "entretanto" nesses lugares —, o poeta não era apenas um criador. Ele também era um destruidor, ainda que sem intenção. Aquilo que devia ser sombra e consolo tornava-se omissão, pilhas de cartas não enviadas que jaziam ao lado de recibos de pão amassados. Quando surtava, não sabíamos se falava com a morte ou com a própria esperança.
Deus, ou o que quer que fosse aquele vazio que tudo preenchia, parecia exausto. Passava os dedos pelos cabelos inexistentes, suspirando como quem recebe mais um pedido de algo impossível. “Outro poema?”, perguntava-se. Mas o poeta não o ouvia. Estava ocupado matando pássaros poéticos, um a um. Sem crueldade, claro, porque a crueldade tinha o gosto amargo de café requentado, e aquilo que fazia era além do bem e do mal. Era simplesmente inevitável.
“Estou sentindo dor”, dizia o poema, mas o poema estava de luto, ou talvez cansado demais para ser poema. Enquanto isso, árvores, disfarçadas de absolutas verdades, praticavam ioga em posições tortas. A morte, elegante como quem atravessa ruas sem olhar para os lados, passava por tudo isso sem se importar. Porque ela também passa, como tudo passa.
O poeta passava. A laranja passava. Os pássaros, que juravam nunca mais voltar, passavam. E o amor? O amor ficava como aquele pão que compramos sabendo que vai endurecer. Sabendo que não dura, mas ainda assim escolhemos levar para casa. Porque o que não passa, no fim, é essa mania absurda de acreditar.
E, enquanto permanecíamos do lado de fora, olhando por entre as fechaduras do templo, entendíamos pouco e sentíamos muito. Camada a camada, desprendíamos nossos próprios pensamentos enquanto o poeta continuava a criar um varal de poesias. Era como se, ao espiar, nos tornássemos parte daquilo que não compreendíamos. Porque o templo não era um lugar para entender. Era um lugar para ser. Para passar. E, talvez, para ficar por um breve período.

Ainda que o silêncio te faça hesitar

Escrevo-te como quem toca o horizonte no vidro da madrugada.
Dilato o espaço entre as palavras,
abrindo atalhos para que o silêncio te encontre.
As aves, sim, elas nascem no branco,
mas é o teu pedido que lhes dá asas.
Os comboios? Talvez esperem por nós,
talvez aprendam a flutuar,
porque as viagens que plantamos no papel
não obedecem aos trilhos.
A espada ganha paladar no meu gesto;
transformo o frio em mel.
Há tanto em ti que se dissolve em metáforas,
como um segredo ao vento.
E, se morrer é parte de esculpir,
então faço-o sem medo,
sabendo que cada linha
é um pouco de nós que perdura.
Quanto à lua, indigesta ou não,
convido-a a sentar-se.
Faço-lhe um chá de jasmim
e dou-lhe o teu nome como companhia.
Porque, em cada frase que me deixas,
há um mundo inteiro a pedir para nascer.

A Sincronia do Desalinho

Escuto-te como quem contempla um incêndio antigo a devorar o horizonte, um fogo que arde sem pressa, como se soubesse que o tempo é seu aliado. As tuas palavras chegam-me como brasas levadas pelo vento, que cruzam o ar sem tocar a terra. Vejo-te avançar, preso a uma coleira invisível, e cada passo teu ressoa como um trovão distante, como se o chão tremesse por respeitar o peso da tua cólera contida. Falaste-me de alturas, de vistas que enganam. Observo-te descer, não como quem cai, mas como quem retorna ao ventre do desconhecido, um voo ao contrário. Há algo de ritual no teu movimento: tu não perdes altitude, tu entregas-te a ela, como um pássaro que entende que a gravidade é apenas um convite para repousar no inevitável. E a superfície, quando te acolhe, exala o aroma antigo das ferrugens do passado, como se guardasse, no silêncio profundo da terra, os ossos de tudo o que foi esquecido. Quando dizes que fizeste um filho à solidão, vejo-te à beira do silêncio, num quarto onde o ar pesa e o lume já não aquece. Moldas pedaços de vazio em criaturas frágeis, feitas de tinta e eras, poemas que tremem entre ser e não ser. Observo-os como quem olha um ninho suspenso no galho mais alto — pequenos demais para o céu, grandes demais para o esquecimento. Vejo-te sonhar com peixes que voam e mares que se dobram como lençóis. Há algo de bruto e belo nos teus sonhos: são eles que desafiam os limites do que se pode tocar. Permaneces entre o concreto e o impossível, lutando com o invisível, chamando os astros como quem grita num deserto, mesmo sabendo que o eco não responde. Observo-te debater-te contra correntes sem elos, libertar braços que nunca estiveram presos, porque as tuas algemas são feitas de vontade — e há grandeza nisso. És um relógio sem ponteiros, o único capaz de marcar a passagem do desalinho. A faísca que temes é a mesma que te dá forma, um fogo que dança em ti, não para te consumir, mas para te eternizar. Se a vida é uma cidade com ruas apertadas e luzes que vacilam, és aquele que caminha atento às sombras, à procura do que se esconde nas esquinas. Observo-te de longe, em passos, em voz. Os ciclos continuam a girar, mas no teu silêncio partido em dois, ouço a única verdade que importa.


A Realidade, as Aves e o Silêncio

Entendo que, ao chamar a realidade à realidade, procuras o nome certo para aquilo que flutua no indizível. As coisas são — apenas são — mas nós insistimos em vê-las pela geometria dos nossos olhos. Eu também já quis medir o mundo com números e variáveis, como se um fruto pudesse caber no frio exato de uma equação. Mas a centrifugação da vida, o movimento inevitável, destrói todos os labirintos que desenhamos. Não há linha reta que resista à queda. Falas do poeta como insaciável metafórico, e percebo-o: também o sou, talvez menos habilidosa, mas igualmente sedenta. Criamos imagens como quem escava a areia fina à procura de um fio de ouro escondido no caos. As cicatrizes que mencionas, os tempos verbais cravados no peito, doem por não pertencer ao passado. As palavras vivem aqui, no agora, e a ave que chora dentro de ti talvez tenha irmãs em mim — aves de silêncio, talvez de grito, que esperam que as libertemos. Mas nenhuma ave quer ser adorada. Não escrevemos para sermos louvados. Precisamos partir o silêncio em dois, como quem rasga um véu para enxergar o outro lado. Não é estética, nem vaidade — é urgência. Um ato quase mecânico, como respirar, mas onde o ar vem carregado de música e de cansaço. Por isso, recebo as tuas palavras como quem recolhe pequenos fragmentos de vidro, sabendo que podem ferir, mas que, na luz certa, refletem beleza. A poesia é essa dualidade: a ameaça e a revelação, o fruto e a variável, o voo e o peso. Chamar a realidade à realidade, então, é um esforço de nomear o inominável. Tu semeaste as palavras; eu só tentei escutá-las antes que voltassem a flutuar.

A Ilha Cercada de Palavras

Há quem escreva por passatempo, quem escreva por prazer, e quem escreva porque a escrita é a última tábua de salvação antes de afundar. Para esses últimos, parar é morrer — e morrer é impensável. Talvez escrevam por vício, por necessidade biológica ou por aquela teimosia que só os condenados ao ofício entendem: as palavras têm de sair. Ele, o escritor, é desses. Cada frase é como uma gota do seu sangue. Um sacrifício. Uma transfusão do invisível para o visível. Poucos reparam, mas ele nunca respira fundo entre uma linha e outra. Não quer perder tempo. Talvez tenha medo de que, ao respirar, o fio da memória se rompa ou que a próxima palavra não venha. Talvez saiba que um dia o silêncio virá — e ele não quer estar desarmado quando isso acontecer. Desce as escadas do tempo todos os dias, sem lanterna, com os joelhos esfolados e o coração entre as mãos. Lá no fundo, encontra o menino que foi. Vê-se pequeno, num canto qualquer do passado, a chorar como um anão que implora por centímetros. "Cresce", diz-lhe. "Não há tempo." O menino olha para cima, descrente, enquanto o homem — mais velho e mais cansado — vai caminhando para a frente, cavando no peito um túnel onde só cabem palavras. Escrever, afinal, é o único jeito que ele conhece de se lembrar das coisas sem ser engolido por elas. A memória é um comboio que liga o céu ao seu íntimo. Vai e vem, entre nuvens e abismos. Na infância, achou que a velhice seria uma profecia distante, com letras que nunca conseguiria ler. Hoje, com os olhos ardendo e a caneta a falhar, percebe que as letras estavam lá o tempo todo — só que nunca foram legíveis. Por isso escreve. Escreve para se doer um pouco mais. A dor, ele descobriu, tem um poder curioso: traz imagens vívidas, cheiros esquecidos e vozes que ninguém mais ouve. É como espetar agulhas em si mesmo para despertar fantasmas adormecidos. Quando tudo mais falha, cria um campo fértil, onde as palavras são semeadas e colhidas com um cansaço resignado. À noite, pernoita com os olhos postos em criaturas invisíveis, no meio de florestas onde os animais — selvagens e poéticos — exalam versos no escuro. Lava o rosto numa pia onde corre lava fria. Não há manhãs tranquilas. A escrita nunca lhe dá descanso. A vida à sua volta, com todos os seus ruídos, é o livro que ele ainda não terminou de escrever. Cada momento, cada pessoa, cada gesto, é uma linha por decifrar. Ele escreve porque, ao escrever, entende-se. E porque se entende, resiste. Os pulmões enchem-se, as ilusões retornam, e a morte fica adiada por mais um dia. Quando se dá conta, está sozinho. O seu corpo já é uma ilha. Uma ilha rodeada de livros que ele próprio construiu — página a página, lágrima a lágrima, respiração contida. E ali, naquele silêncio onde poucos se atrevem a chegar, o homem respira finalmente. Não é um respirar fundo, como fazem os que nada temem. É um respirar pequeno, quase imperceptível, mas suficiente para continuar. Amanhã, ele dirá ao menino outra vez: “Cresce”. E o menino acreditará — por mais um dia.

"A Dinâmica do Guarda-Chuva"

Sei que as tuas vinhas crescem, indomadas,
e cada verso é um laço que segura o sopro do vento.
Não apenas as leio—nas noites de sono, eu as vivo;
abrem-se portas em cada linha
para a casa onde ainda moramos, cheia de risos e sussurros antigos.

Sei que o silêncio sob o teu guarda-chuva
é um abrigo mais que da chuva—
guarda segredos, guarda ecos
de palavras antigas que me deixas no ouvido,
e me pergunto se são minhas ou se as sonhei contigo.

Sei que os teus moinhos, com velas que giram frenéticas,
desenham mapas nos céus — cada volta,
uma nova rota de ventos que dançam e nunca se repetem.
E aqui, neste agora tão frágil,
aprendo a respirar livre,
longe do peso urgente do tempo.

Sei que roubas o sal das ondas bravas
e o devolves aos barcos, uma promessa de viagem;
porque pensar, como o mar,
só vive se houver sede de novos horizontes.

E sei, por fim, que num futuro qualquer,
encontraremos o fio dourado que nos une—
pois a infância é a terra à margem deste rio de palavras,
e cada verso nos chama de volta ao início,
onde tudo começou.

"O não dito"


Enquanto ele crescia, vi-o engolir passarinhos. Era como se cada palavra que queria dizer, cada verso que queria deixar escapar, fosse engolido à força, em soluços secos. O pai, duro como uma pedra de moinho, esmagava o som antes mesmo de ganhar forma, enquanto o rapaz mastigava o silêncio, deixando que os pássaros se debatessem dentro do peito. Eu observava, sim, porque há coisas que se vêem mesmo sem querer. E via-o cabisbaixo, os olhos fugindo das janelas, como quem procura não perturbar o mundo. Era curioso. Não pela dureza do pai, que é daqueles que se aprende nas esquinas da vida – como bater na mesa para afirmar autoridade – mas pelo modo como o rapaz parecia crescer para dentro, em espirais. Enquanto outros crescem para fora, ele enredava-se em si mesmo, numa espécie de arquitetura feita de poesia não dita. Quando caiu na rua, eu estava lá. A princípio, pensei que era só mais uma daquelas quedas da vida. Mas não. Vi o pai correr, desajeitado, como quem tropeça em si mesmo. Pegou o filho nos braços e ali, enquanto o cheirava, era como se estivesse a farejar um abismo. Não era só o cheiro do medo. Era o cheiro de tudo o que ele não disse, tudo o que reprimiu. Cheirava à ausência, àquela perda que chega antes da partida. E então aconteceu. Pássaros. Sim, pássaros. Saíram da ferida como quem não aguenta mais a clausura. Não era só sangue que escorria. Era a própria essência do rapaz a libertar-se, indo ter com o pai, pousando ali, ao redor, como que para dizer: "Olha, aqui estou eu. Sempre estive." E o pai chorou. Pela primeira vez, chorou. As lágrimas, tão guardadas quanto os pássaros, agora eram rios. Eu vi. Vi os pássaros descerem, pequenos e ágeis, beberem dos olhos do pai, saciando a sede daquilo que nunca foi dito entre os dois. Fiquei ali, a olhar. Talvez ninguém mais entendesse, mas eu sabia. Sabia que nem todos os pássaros voam ao mesmo tempo e que alguns só escapam quando o mundo nos obriga a cair. E talvez – só talvez – aquele pai tenha aprendido a ser um pouco menos pedra e um pouco mais asa.


O mundo realmente não está pronto.


Estava a caminhar pelas ruas de Sucupira com a minha fiel câmera, imersa no desafio hercúleo de capturar a essência desta cidade onde até as pedras parecem ter opiniões políticas, quando deparei com uma cena que poderia muito bem ser o clímax de uma cena teatral de gosto duvidoso. Um casal de namorados, estrategicamente posicionado junto à fonte da praça, trocava juras de amor eterno — ou pelo menos até à próxima briga sobre séries e doramas. Ele, um aspirante a trovador moderno, pontuava as palavras com uma dramaticidade digna de um prémio de consolação em concursos de declamação: "Sabes, não convém viver tão perto dos que carregam desgraças..." Ela, que já começava a parecer ligeiramente arrependida de não ter escolhido um lugar mais movimentado, suspirava com um olhar de quem revia mentalmente os prós e contras daquele relacionamento. "Mas também não faças a tua morada longe dos que sabem o sabor do amor", ele prosseguiu, fazendo um gesto teatral com as mãos. "Prefere viver onde o mundo nasce, onde os rios contam segredos..." disse, apontando poeticamente para a fonte ao lado — ironicamente, ligada por um cano enferrujado que gotejava. Eu, tentando conter o riso, ajustava o ângulo da câmera, convencida de que estava a presenciar a união improvável de Camões com um influenciador digital. Quando ela finalmente falou, sua voz tinha um leve tom de exasperação mascarada de curiosidade: "Mas então e tu, Ricardo, o que fazes da vida?" Ele, com uma seriedade de mármore, respondeu: "Eu sou uma casa sem janelas, mas cheia de enigmas. O mundo é que ainda não está pronto para entender." Foi aí que o riso me escapou, mais alto do que eu gostaria. Ele virou-se para mim, os olhos a disparar raios de indignação. "Desculpe-me, está a achar graça ao quê?" "Nem um pouco", respondi, contendo-me com esforço. "Só estava a pensar que o céu precisa de alguém para contar histórias, ou fica entediado." Ele pareceu ponderar, satisfeito com o que interpretou como uma admiração ao seu talento, enquanto ela o observava com o cansaço de quem sabia que esta não era a primeira nem seria a última pérola filosófica do dia. Voltei à minha tarefa de fotografar, mas saí dali com uma certeza: Sucupira nunca desilude. Seja pelos seus recantos, seja pelas figuras que os habitam, cada cena é uma obra de arte inacabada, mas sempre brilhante no seu absurdo.